segunda-feira, 18 de abril de 2011

O TROTE - parte VI

                                                         Barcos em Carolina - MA (Foto jjLeandro)





Não foi uma história fácil para Cristal contar. Percebi que reacendia fogos mortos ou reavivava os que ardiam brandamente em seu íntimo. Uma narrativa cheia de lacunas, pausas e suspiros que demonstravam sofrimento conforme avançava e o desejo de que tudo acontecesse diferente se isso fosse possível. Sempre esperamos que uma história contada incansáveis vezes uma hora tome um atalho que nos livre dos momentos difíceis, das agruras, das perdas, levando-nos aonde deseja o coração. Era esse o ingênuo propósito de Cristal, uma criança num corpo castigado de mulher. Quando um interlocutor se dispunha a ouvi-la, tinha a história no ponto — prova de constante exercício, nem que fosse após o cliente embebedar-se o suficiente para ser impossível a recusa. Não era o meu caso, embora a bebida colaborasse para fazer crescerem os espaços em branco na sua história. Cristal fora homenagem da mãe ao quartzo que tornara possível o seu encontro com Raimundo. Recordo que me disse: meu pai era garimpeiro, dos muitos analfabetos que queimavam o dinheiro ganho com o cristal nos cabarés de Carolina. E também o duro juízo que fazia da própria mãe: não sei como pôde se apaixonar por ele e engravidar; coisa de puta besta.
Caminhou até a janela aberta, procurou, olhando para baixo, o caudal invisível do rio. E nele buscou e encontrou, com a propriedade de quem conhecia bem as inclinações e as distâncias por ali, as luzes de sinalização das cabines dos pentas*. Havia um atracado no cais distante — as luzes bruxuleando como lamparinas —, embarcou nele seus pensamentos e buscou a fuga no nevoeiro feérico do rio. Abraçando-a por trás, impedi que me deixasse. Sacudi-a com forte abraço restaurador e o esforço dela para se libertar de mim lançou em meu rosto o cheiro forte de nicotina e álcool que impregnava seu hálito.
Para apaziguá-la, murmurei:
— Engravidaria de mim?
Ela respirou fundo o ar que vinha do rio carregado da umidade noturna. Balançou a cabeça, para afastar vozes desconhecidas que a tentavam. Acho que estou ficando bêbada, disse enquanto passava as mãos no rosto e nos cabelos. Está não, objetei. Você ouviu bem o que eu disse: engravidaria de mim? Você acabou de dizer que sua mãe foi burra ao engravidar do garimpeiro.
— Mas com você é diferente, qualquer mulher desejaria engravidar de você.
— Uma ova que qualquer mulher desejaria engravidar de um moleque como eu. Você está sendo rigorosa demais com sua mãe, isso sim. Não vê que também toparia uma gravidez maluca como fez sua mãe? Mas não a culpe. Ela apenas curtiu o amor que lhe foi possível.
— Mas precisava ser com um homem que batia nela, que vivia bêbado, que vinha a Carolina gastar o que ganhou no garimpo e dormir com outras putas? E para mim, sua filha, nem carinho nem conforto?
— Eu já lhe disse: talvez não tenha sido o amor desejado por ela; mas foi o amor possível.
Ela estava surpresa, estava claro que sua agitação e a voz quase sem pausa acusavam o seu desconforto diante de minha interlocução e meus esclarecimentos. Bem possível que em todas as oportunidades de expressar-se ocorrera um monólogo com um bêbado prostrado. Não ouvia um sim ou um não, podia falar, falar e falar ininterruptamente. E quando a história chegava ao fim, se não chorasse, o ronco do cliente ocuparia o silêncio opressor. Foi para fugir de uma situação que a obrigaria a reflexões, que a poderia levar a atalhos não desejados mas reais, uma vez mais negando-lhe o tão almejado final feliz, que fez o convite com um sorriso forçado.
— Vamos banhar no rio?
— A essa hora?
— Muita gente faz isso aqui — disse com uma desconcertante travessura na voz.
— Vamos procurar o Udinei e a... a...
— ... A Sheila para irem com a gente — completou.

 * Como eram chamados metonimicamente os barcos a motor em Carolina. A marca do motor utilizada nos barcos era a Volvo Penta.


jjLeandro

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