quarta-feira, 20 de abril de 2011

O TROTE - FIM

Carolina - O porto (Foto - jjLeandro)







O banho no rio foi o nosso grande erro. Mas Cristal não teve culpa no que aconteceu depois, nem Sheila, como eu e Udinei, em extremo desespero, chegamos a cogitar. Fomos os quatro nus, apenas uns molambos ao ombro — para enxugar-nos depois. Crisóstomo, a cara lerda acusando ardis que o álcool não nos permitia decifrar, recusou-se; preferia as águas mornas do sexo, foi a justificativa que deu. Quase no breu, valendo-nos da fraca luz de uma lamparina, descemos o barranco pela lateral da casa. A embriaguez aumentava os riscos de queda e também a algazarra na descida. Cristal explicou-me que entre os ribeirinhos era costume o banho a qualquer hora, para mitigar o calor, pois as casas não tinham água encanada. Nos cabarés, era uma maneira de aliviar o excesso de álcool e de assear o corpo. Por lá ficamos quase uma hora. Agarrado aos sarãs na água rasa do barranco, conservei a cabeça o tempo todo acima da superfície líquida para evitar a friagem. Para mim, conhecer os segredos de uma mulher era aventura bastante para um único dia. Arriscar com o rio seria abuso imperdoável. Ao contrário, Cristal, Udinei e Sheila mostravam grande intimidade com o rio: nadavam, mergulhavam, riam e faziam chacota de meu temor. No escuro, suas vozes pareciam ecos de fantasmas fanfarrões querendo-me assustar. Pouco via à volta além do círculo assinalado pela luz tímida da lamparina sobre uma pedra. Longe, na outra margem sobre o barranco, as luzes de Filadélfia eram um rosário de pequenas contas faiscantes que nos vigiavam.

Já passava da meia-noite quando voltamos revigorados do rio. Era hora de pagar as meninas, acertar as bebidas, pôr roupa e ir embora. Fui vestir-me no quarto onde me diverti com Cristal, mas meu uniforme não estava lá. Quando saía do quarto, Udinei quase trombou comigo, também excitado.
— O meu uniforme sumiu — disse.
— O meu também.
Cristal e Sheila reviraram os quartos, uma tarefa simples e rápida na mobília exígua: nada.
— E agora? — choramingou Udinei.
Antes de responder, olhei para as meninas encostadas à janela, visivelmente constrangidas.
— Foram vocês? Cadê nossos uniformes?
— A gente tava no rio com vocês, esqueceram?
Arrancamos Crisóstomo da cama. Tínhamos certeza que resolveria o enigma. Mas ele negou veementemente que soubesse algo, que tivesse ouvido qualquer barulho, que alguém tivesse invadido a casa enquanto nos divertíamos no rio. Entre aquela gente era comum as portas só serem fechadas na hora de dormir. Ainda se deliciou com o nosso aperto:
— Como puderam ser assim tão patetas? Perderam para os moleques da rua, bem merecido. Não há dúvida que eles entraram e levaram os uniformes.
Ele falava, falava e falava. Aos poucos aliou a autoridade que a maior experiência lhe conferia ao nosso desespero para dobrar-nos mais e mais. Por fim concordamos que fôramos idiotas.
— E como vamos sair dessa enrascada? Como vamos embora? — pedimos ajuda.
A fulaninha que fornicara com ele a noite toda também queria ver-nos fodidos, sabíamos, mas se mantinha com fingida seriedade diante de nossa aflição. Rindo o quanto podia — e só ele ria —, Crisóstomo apontou uma saída, desesperando-nos mais ainda:
— Arruma lá dois vestidos para eles.
— O que disse? Prefiro ir pelado pra casa. — reagi, recebendo o irrestrito apoio do Udinei, de pouca serventia.
Crisóstomo divertia-se:
— Pois que seja, há mesmo pouca gente na rua agora. Eu já estou indo.
Belo companheiro era ele. Dava impressão de querer mesmo ver-nos em apuros. Caminhou para a porta. Suplicamos das meninas qualquer peça rota. Uma calça imprestável de algum cliente que ousara uma noitada sem dinheiro e a deixara penhorada. Uma calça para cada um era o bastante. Mas não havia uma sequer. A salvação veio com Cristal. Revirando um velho baú de seu pai, encontrou surrados gongós da lida garimpeira. Quase não acreditei ao tê-los nas mãos. Ficaram rodando em nossas cinturas, mas estávamos novamente vestidos.
Não desejei sequer camisa, queria afastar-me dali o mais depressa possível.
Verdade que a emergência da volta estava resolvida. Mas como explicar em casa o sumiço do uniforme? Tive sorte de encontrar meus avós em sono solto. Na manhã seguinte, sábado, acreditaram de bom grado que a prova fora difícil e o professor estenderá o horário. Mas a aflição não me abandonou um segundo sequer até o final da tarde de domingo.
Depois de voltar da missa do final do dia, encontrei sobre a mesa grande da sala um pacote com meu nome.
— Vó, quem deixou? — perguntei intrigado.
— Um menino.
Abri o volume e meu coração saltou aos pulos: estava salvo — o meu uniforme! Havia um bilhete junto, de ninguém menos que o Crisóstomo: “gostou do trote? O Samuel e o Rocha Filho me ajudaram muito.”
O sacana valeu-se de dois outros colegas para pregar-nos a peça.



jjLeandro





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