quarta-feira, 25 de maio de 2011

O DELÍRIO DAS CINCO DA TARDE

A morena misteriosa passava diante de mim, à frente da casa de minha avó, todos os dias. Inicialmente, tive dúvida se não ficava diante do relógio esperando as cinco da tarde para sair à rua. Nunca soube ao certo, mas passei a imaginar que era inteligente o suficiente para fugir do sol escaldante do início e meio da tarde em suas incursões exibicionistas na rua das mangueiras.
Ela invadiu minha vida, depois os meus sonhos. A tal ponto que alguns meses depois não sabia se a vira na rua ou sonhara; outras vezes sonhava jurando tê-la visto na rua. E como eram habituais os sonhos e as aparições reais, sentia uma sensação de atordoamento dominar-me quando sonhava com ela à noite e à tarde ela se apresentava na rua com a mesma roupa. Inúmeras vezes assim coincidiram realidade e sonho. Além disso, ficava a sensação de os dias sucederem atropeladamente aos pares ou então a confusa impressão de sonhar um sonho duas vezes na mesma noite.
Certo é que a morena me enlouquecia, eu entrava em parafuso a cada aparição sua. Como não dava vazão ao sentimento novo que experimentava — o amor, sim, eu me apaixonara platonicamente por ela —, vivia um verdadeiro inferno de práticas onanistas.
Lembro como foi duro, terrível mesmo, consumir-me na expectativa da aparição dela naquela quarta-feira de agosto. Desejava ardentemente uma vez mais a coincidência de realidade e sonho. De antemão um esclarecimento para melhor dimensionar o absurdo de meus propósitos: o neófito no amor, tampouco o adolescente apaixonado deveriam acreditar no que eu esperava acontecer, porque a experiência de vida aos dezessete anos é suficiente para assegurar que aquilo era delírio. Mas vamos lá, a soalheira dos trópicos às vezes deforma mentes sadias, quiça ela tivesse sido afetada. No fundo, acho que minhas magras esperanças se resumiam a isto.
Ao levantar na quarta-feira de uma noite estrebuchada entre sonhos lascivos, amarguei a humilhação de sentir o calção úmido, manchado. Agora mais essa! Já não tinha mais vontade própria, a morena era senhora de mim, sim, movimentava a seu bel-prazer meus cordões de marionete. A polução noturna era prova cabal do domínio que exercia sobre mim. Quase caí em desespero. Que ninguém levasse ao pé da letra as sandices que imaginei, verdadeiras explosões de raiva impotente que me doeram a cabeça: ‘amputem-me as mãos —  como aos ladrões nos países muçulmanos — já que não preciso mais delas’.
A ducha matinal recompôs-me a paz, ganhando função extra além de lavar-me do ranço dos suores noturnos.
No café da manhã fui espartano, a morena como se apresentara no sonho parecia desfilar sua beleza na borda da xícara, inibindo meu apetite. Deitava o corpão no guardanapo de mesa, lançava-me beijos sentada no pires de pernas cruzadas.
Ixe!, minha avó, também à mesa, comentou o óbvio:
— Levantou, mas continua dormindo.
Meu avô defendeu-me, intervalando as palavras com pigarros asmáticos:
— Deixa o menino, nessa idade a cabeça anda nas nuvens.
Passei a manhã esperando as cinco da tarde. Procurei entreter-me além do comum, para que o tempo viajasse de trem-bala.
Como estudava à noite, quando não havia prova obrigando-me a me debruçar sobre os livros na mesa da sala grande ao lado do caramanchão de buganvílias, corria de uma ponta a outra do balcão da loja de tecidos de meus avós. Ali sim o tempo espichava que nem os elásticos que vendia para as mulheres; um dia valia dois.
Driblei-os, pois, alegando prova à noite.
—Fica aí na sala — disse minha avó, levantando-me da mesa na companhia do marido.
Um suspiro de contentamento deu-me a certeza que conseguiria encurtar o tempo; as cinco da tarde chegariam velozes naquele dia.
Decide esperar a hora de forma melodiosa, que tal música?
Ainda não apresentei a morena anatomicamente, ficar repetindo ‘morena morena’ faz cada um, a seu talante, criar um ícone que traduz suas mais íntimas taras e perversões. Felizmente representado individualmente na mente de cada um, ufa! O que seria do mundo se todos saíssem por aí escrevendo como um verdadeiro Marques de Sade? Excogitei essa possibilidade, que todos se sujeitassem ao que também me escravizava. Bem, enquanto Sergio Endrigo me levava a crer que sua Roberta era a minha morena, desejei o déjà vu uma vez mais. Há sonhos que são desejos realizáveis; há sonhos que são deambulações extravagantes da mente, lícito dizer: delírios. A música incitava-me a acreditar no último tipo.
Mas a morena? Bela, sem dúvida. Nunca a descrevi senão a partir do ponto que mais me atraía: as coxas. Grossas, dois pilares roliços, tesos. A cintura de vespa realçava as ancas nervosas de adolescente. A barriga, tão exuberante quanto o resto do corpo, parecia ofuscada pelos seios que, petulantes, saltavam à frente. O cabelo negro, liso, aparado à altura das orelhas, deixava à mostra a nuca alabastrina. Boca, nariz e olhos, sedutoramente desenhados, tinham o poder paralisante de Medusa sobre quem a olhasse de frente.
O toc-toc da agulha do toca-discos arranhando o vinil ao fim da última faixa do LP me fez saber que o tempo voava. A música me lançara aos braços uma plêiade de mulheres de um excitante harém imaginário. Os eunucos que me trouxeram Teresa, Roberta, Manuela, Emmanuelle, Lara e Aline eram ninguém menos que Endrigo, Iglesias, Conniff e Christophe. Ah, seriam elas como a minha morena? Assim se passou a manhã e eu enfrentei o almoço sem tirar as cinco da tarde da cabeça.
A aproximação da hora do desfile da morena deixou-me ainda mais excitado e apreensivo. Ela se apresentaria como no sonho? Deixaria que a beleza radiante de seu corpo me cegasse a ponto de eu alcançar o orgasmo involuntário? Eram dúvidas que me consumiam.
Quinze minutos para as cinco da tarde o telefone tocou. Não era possível um estraga-prazeres na hora H. Corri, atendi. Fone no ouvido, olhos colados na veneziana da janela vigiando a rua por um retalho de fresta. Convite para sair à noite. Não queria papo, veríamos depois, tchau!
Novamente à porta, a esquina da praça — por onde ela apareceria — debaixo da minha mira. Viria, como tantas vezes, o sonho antecipar a realidade? Por um momento envaideci-me ao suspeitar ter poder sobre a subconsciência dela, manipulando suas decisões. Era a única maneira de justificar tanta coincidência. À lembrança, tentei contato uma vez mais. Ainda daria tempo de transformar meu delírio em realidade?
O sol escondeu-se atrás da massa escura das mangueiras da praça, lançando longas sombras no meio da rua. As mães já haviam chamado as crianças para o banho antes do jantar. Não havia mais qualquer delas na rua. As sombras das mangueiras no meio da rua formavam um tapete escuro para o seu desfile radiante.
Ela vem já! Ela vem já!, exultava consultando o relógio.
E ela veio.
Inacreditável!
As coincidências anteriores não passaram de meras coincidências. Ela não apareceu esplendidamente nua como no meu sonho.

jjLeandro

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