terça-feira, 3 de maio de 2011

MEU PAI FAZIA O DIA NASCER

Imagem: Montagem de jjLeandro

Quando o dia amanhecia para mim, sobre a mesa da cozinha — onde eu tomava café antes da escola — já estava, ainda presa ao gancho, a carne que minha mãe ia preparar para o almoço. Meu pai a trazia do mercado num ritual diário que a escassez do produto em Carolina, e não o vício, ditava. O hábito de vê-la ali foi construindo uma história ao longo de alguns anos, hoje memória, cheia de episódios de contornos irreais, fantásticos, mas satisfatórios e verdadeiros para mim.
Havia diariamente em casa três coisas infalíveis: o sol rubro no fundo do quintal, como os nossos olhos ao acordar cedo, platinando-se com o avanço das horas; eu, testemunha e cúmplice da sua preguiça matinal; e a carne também rubra, exânime, com córregos sanguinolentos escorrendo pela mesa cujas margens moscas ávidas e destemidas rapidamente povoavam, bebendo-os. Engraçado, até os insetos imitam os humanos: migram aos magotes para onde é mais fácil o alimento. Mas eu não deixava nada de graça e travava uma guerra diária contra elas, usando a mão como arma. Piparotes lançavam muitas delas bem distante. Revoavam sobre a carne para logo voltarem teimosas ou inconscientes do perigo. Nova mortandade. A satisfação estampava-me um sorriso no rosto como nos generais que pressentem a vitória quando os seus movimentos de tropas se assemelham a fulminantes jogadas de xadrez que resultam em xeque-mate. Regozijava especialmente quando a arma era uma liga fina de câmara de ar de pneu de carro. O estrago era maior. Sabia que minhas vítimas viravam uma pasta ao serem lançadas distantes de mim. Era o bastante para acreditar na continuidade das conquistas humanas: eu trazia latente o inato sadismo da raça.
Ao sair para a escola o tampo da mesa, campo da batalha desigual, estava repleto de soldados alados mortos. Suas asas eram uma vantagem que não conseguiam usufruir na luta pela sobrevivência contra mim. Restava à empregada, ao limpar a mesa enquanto eu me afastava, olhar-me com carantonha assustadora, que as minhas habilidades telepáticas traduziam assim: ai, que moleque nojento!
Eu não ligava mesmo a mínima para o que ela dizia, muito menos para o que nem chegava a expressar em palavras.
Tinha a mente ocupada por outros pensamentos.
A cor rubra, para mim, associava duas coisas matinais: o sol e a carne no gancho escorrendo sangue. Sabia que o meu pai a trazia todo dia. Levantava cedo, pegava o gancho de metal escuro com quatro quinas feito por um ferreiro da cidade — uma pequena e rústica âncora — e invadia a escuridão da rua. Era com ganchos que os homens iam ao mercado nem bem os galos anunciavam que os quartos das reses abatidas já estavam pendurados nos varais dos açougues. Meu pai recebia no rosto o ar fresco da madrugada, cumprimentava um ou outro vizinho que também seguia para a beira do rio, e partia para fazer o dia nascer. Era nisso mesmo que eu pensava ao ver a carne no gancho sobre a mesa do café todos os dias. Tinha a impressão que era um naco da rubra carne do sol, arrancado pelo esforço de gancheá-lo para fazê-lo nascer. Um fórceps como ainda usava o velho Zeca, médico que morava no casarão do outro lado da praça. Eu tinha muito medo que ele viesse puxar minhas orelhas com o fórceps. Já bastava me ter puxado pela cabeça no parto, e a intervenção ter resultado em uma clavícula quebrada. Por isso fugia dele quando via sua reluzente careca denunciá-lo na rua.  

Meu pai fazia sim o dia nascer. Não havia dúvida que a sanguinolenta carne sobre a mesa fora extirpada do sol. Não era outra coisa senão lamento pela perda diária de um quinhão seu aquele olho vermelho sobre o muro do quintal. Nunca perguntei a meu pai como conseguia a proeza. Preferia o segredo, assim acalentava a sua aura de herói. Não há dúvida que uma pitada de mistério sobre eventos da vida de um herói é ingrediente essencial da sua composição. Contentava-me com as sucessivas provas que ele depositava desinteressadamente e em silêncio sobre a mesa. E até gostava de encontrar a carne atraindo moscas. Podia dar vazão às forças acumuladas nas horas inativas do sono.
Assim ia mais tranquilo para a escola.

Como maneira de vingar-se de mim porque deixava sujeira sobre a mesa Quitéria, a empregada, sentia prazer em me contrariar. Mas isso não empanava a alegria do general que todo dia acumulava vitórias contra os lendários guerreiros alados. Entretanto, uma vez chateou-me muito. Foi quando disse a ela, numa das raras tréguas das guerras muscídeas, que na escola meus colegas sabiam que meu pai fazia o dia nascer. Eles gostavam muito de ouvir eu contar como meu pai fazia o parto do dia.
Ela deu uma poderosa gargalhada que fez uma nuvem de moscas levantar voo da mesa. Até eu surpreendi-me com o forte estrondo brotado de seu corpo frágil. Mas me contrariei mesmo foi quando ela disse, curvando o corpo sobre mim, que sustentava com a mão apoiada sobre a quina da mesa:
— Teu pai num fez nascer nem vocês, foi tudo obra e arte do doutor Zeca, que dirá pôr o sol pra alumiar o dia. Moleque tu tá é variando.



 jjLeandro

Um comentário:

MARILENE disse...

Seus textos são surpreendentes, de uma naturalidade e clareza que muito bem me fazem.
Costumo vir sempre aqui, quando tenho mais tempo, para apreciá-los melhor.