segunda-feira, 14 de junho de 2010

O DESABAFO DA BOLA



Triste sorte a minha de o mundo exercer a burrice: o futebol é unanimidade universal! Para minha desgraça não existe ainda uma sociedade protetora da bola. Frustrei-me com o juiz; nele depositava confiança de parar o linchamento. Tempos atrás tinha a aura de um magistrado, sobriamente vestido de preto. De nada adiantou, de preto ou coloridamente fantasiado nos dias de hoje, é o meu principal carrasco. Até pune com cartões os jogadores que se agridem quando tentam me acertar. Ele diz, apontando-me: ‘não percam o foco; chutem somente ela, a bola!’

Por isso, nesta Copa do Mundo africana eu tremo uma vez mais quando sou obrigada a adentrar as quatro linhas como os cristãos na Roma antiga imolados por leões sob o júbilo de milhares de espectadores que lotavam as arenas. O espetáculo é idêntico, não percebem, ou se negam enxergar? São 22 estúpidos correndo atarantados atrás de mim, com a finalidade de me dar um violento chute com o pé encaçapando-me no retângulo de 2,44m por 7,32m. A ovação é grande, delírio garantido em ao menos metade do estádio quando me forçam a entrar lá. Há ainda alguns zagueiros ou goleiro do time que desejava evitar a minha ultrapassagem da linha do gol que, revoltados com a própria impotência, desferem-me um chute de misericórdia, lançando-me descontrolada contra as redes ou na direção do meio do campo. Não há escapatória possível dentro das quatro linhas. Quando tento evadir-me, pelas laterais ou linha de fundo num vacilo ou inabilidade dos jogadores, rápido surge um aprendiz de torturador — mal apropriadamente chamado gandula — que me lança sem tempo para respirar às mãos dos malditos que me repõem em jogo.

Vejam bem, sou culpada de tudo, mesmo sendo a maior vítima dessa sessão de tortura chamada jogo de futebol. Quando a falta de habilidade castiga um jogador e ele erra, momento de regozijo para mim, ainda tentam atingir-me nem que seja com palavras ao dizerem: ele furou a bola! E quando o inepto faz uma jogada ridícula, sendo quase linchado como eu, nem assim estou livre, pois o reprovam enxovalhando-me: ‘bola murcha!’ Uma inverdade, pois quando me torturam, é bom que se diga, nunca permitem que eu esteja com peso abaixo de 410g nem superior a 450g. Se um desses hábeis torturadores faz uma jogada que consideram linda, dando-me bolachas de todos os lados como malando na sua mulher, empurrando-me de lá para cá e de cá para lá, sem que um adversário me toque, e afinal me obriga a ultrapassar a linha do gol, sou escarnecida com um: ‘bola cheia!’ Mas não estou obesa, continuo com o mesmo peso.

Não tenho mãos para defesa, nem pés para evadir-me, tampouco orelhas para escutar. Sou esférica, a perfeição como previu Pitágoras, mas isso não me ajuda nada. Pelo contrário, prejudica-me tornando a perseguição implacável. Se um estabanado, pouco destro em tocar-me apesar de meu corpo — pela minha forma — favorecer o contato em qualquer ponto, apenas raspa-me o pé e saio por aí girando sobre o próprio eixo, uma vez mais sofro humilhações. Comparam-me inapelavelmente à feia ave de rapina de hábitos noturnos, acrescentando-me o que não tenho: ‘acertou na orelha da bola!’

Com tantos maus tratos sofridos, tenho ainda que aguentar as maledicências dos cretinos que transmitem ao mundo o meu infortúnio durante 90 minutos, dizendo em tom de mofa que sou ‘Sua Excelência, a bola!’ E Excelência apanha tanto por acaso?, eu perguntaria se boca tivesse.

Só sinto-me um pouco vingada quando, após um peteleco, iludo o goleiro, fujo-lhe às mãos e vou entrando lentamente sem dó nem piedade. Vibro por dentro de felicidade ao notar que a torcida toda se levanta num lamentoso ‘ohhh!’, não acreditando no que vê. Mas minha alegria tem duração da alegria de pobre, pois neste momento desgraçadamente mudam-me o gênero: deixo de ser bola e torno-me frango! Mas por que diabos?!

Vejam só: sofri muito nos pés de um endiabrado moleque que não me tinha dó nem piedade, embora dissessem que tinha três corações. Sempre duvidei e até hoje me faço uma pergunta: e se tivesse só um, o que eu teria passado nos seus pés? Foi tanto o seu desprezo por mim que me humilhou 1284 vezes em sua carreira. Um recorde mundial. Recebeu por conta disso um nome que lembra muito o meu couro que ele tanto esfolava — Pelé. Como nunca esteve em minha pele jamais soube o mal que me fez. Depois de humilhar-me, ia ao fundo das redes buscar-me, dava-me beijinhos (quanta hipocrisia!) e corria comigo sob o braço para o meio do campo. Sabem por quê?

Tinha pressa em chutar-me novamente para as redes.




jjLeandro

2 comentários:

U-DAN disse...

Amigo, reserva pra mim um exemplar da coletânea Moedas Para o Barqueiro. Quais são os horários que você tem disponibilidade de fazer a entrega? Abraço!

U-DAN disse...

Certo. Pode levar pra mim na prefeitura? Trabalho lá, no prédio da prefeitura mesmo, na Secretaria de Controle Interno. Qualquer coisa, o telefone lá é 3411-7144. Trabalho em horário comercial normal. Abraços!