O barco apitou na curva do rio. Insistentemente anunciava a chegada. Era sempre assim quando os barqueiros regressavam de uma viagem a Belém. Queriam todo mundo no cais para festejar o sucesso da volta. Na partida, o choro da incerteza transfigurava os rostos; no retorno, as lágrimas de alegria lavavam a alma. E desde que Florêncio se entendia por gente nada mudara. Há gerações seguidas na família todos eram homens do rio. E antes de aprender isso com o pai, seu pai aprendera com o avô; e o avô com o avô dele. O estardalhaço na chegada era um costume que ninguém contestava, vinha ele então pensando nisso enquanto puxava com mais e mais força, a intervalos, o cordão da buzina. Queria a cidade toda no cais, e muito mais agora que trazia de Belém uma grande novidade.
Lamentou ter esquecido de comprar os foguetes para marcar de longe a alegria do retorno. Mas fora tão grande a correria das compras, de atacadista a atacadista em Belém, que não conseguiu evitar o lapso. Em pouco tempo, ao ser ouvida a buzina em Carolina, começariam espaçadas as explosões dos fogos. Quando o barco aparecesse como um pontinho escuro na lâmina azul do rio Tocantins, e a cidade soubesse que os foguetes já podiam ser ouvidos com nitidez aí os tiros se tornariam mais constantes.
Então Florêncio se sentiria recompensado com juros das dificuldades dos descarretos e das infernais cachoeiras. Arrepiaria de corpo inteiro. Nas viagens em que os obstáculos do rio se mostravam quase incontornáveis, quando soçobrar parecia iminente e se livrava milagrosamente no último instante — e eram tantas essas ocasiões —, a saudação da volta tinha mais emoção. Facilmente ia às lágrimas ouvindo o tiro familiar dos foguetes. Sentia-se amparado entre sua gente, era como se cada um morador pegasse à sua mão para auxiliá-lo — e lembrar então os perigos dos violentos rebojos e travessões do rio, tendo por companhia só água e mata, fazia-o chorar. Olhando a marinhagem, também os homens na alegria do choro voltados para ele, extáticos e mudos, dizia quase inaudível: “estamos a um tiro de foguete de casa”.
O barco avançava lento, pesado, as mercadorias abarrotando os porões e a camarinha. Os homens dormindo sem reclamar sobre fardos e caixas. Levavam de tudo para o comércio local. Os pedidos se amontoavam sem critério em caixas de madeira e sacos de aniagem. A carga que saíra bem arrumada de Belém estava agora jogada de qualquer jeito. E não era para menos com tantos descarretos para salvaguardar as mercadorias da fúria das corredeiras do rio. Havia sal, ferragens, bebidas e calçados. Em algumas viagens um pedido inusitado era feito, muitas vezes sob sigilo, para evitar a vexação pública de quem encomendara.
Florêncio riu enquanto navegava nas águas remansosas do início da vazante. Timidamente algumas pontas de areia já se insinuavam, alvas sob sol forte, na parte interna das curvas do rio. Vai ser um ano bom de praia, pensou, pois as chuvas se foram cedo demais, ainda em meados de abril.
Sorriu novamente acuado pelas lembranças. Deu um grito à marinhagem ordenando comportamento à chegada. Continuou pensando. Decerto no cais estaria também o Joca Nerteiro, proprietário de um sítio nas redondezas da cidade. Coitado do velho, sorriu com malícia. Lembrou do caso dele. Fora procurado pelo Nerteiro no bar do porto, o do Dió, o preto velho do Piauí. Dois dias antes de uma de suas muitas viagens bebia com outros pilotos de embarcação comemorando antecipadamente a partida. A conversa não tinha muita variação, ia do rio e suas malditas cachoeiras ao grande comércio de Belém; não faltavam também no assunto as noitadas nos braços das putas com muito álcool na cabeça nos cabarés. O velho Joca viera protegido pelas sombras das grandes mangueiras, mas ainda assim arfava e suava muito. Talvez fosse de constrangimento, pensara depois Florêncio. O certo é que chegara bem perto dos pilotos quando a conversa era de grande interesse aos homens: um dos pilotos falava sobre uma nova mulher num cabaré de Tocantinópolis. E todos iriam querer se encontrar com ela num quarto imundo na próxima viagem. Ficara por ali ouvindo um pouco, tomando fôlego, calado. Pediu uma dose de pinga, bebeu, pôs o copo sobre o tosco balcão da venda espantando as moscas com o movimento, e lambeu os lábios. Pigarreou e tocou timidamente no ombro de Florêncio. Quando este se voltou, Nerteiro parecia ainda menor do que era. Queria uma conversa reservada. O piloto olhou-o com má vontade. Sair da companhia dos amigos àquela hora era quase sacrilégio. Reinaldo ia dizer onde encontrar a puta. Atendê-lo à hora da revelação lhe desagradava. Mas vai que queria uma encomenda, todo mundo sabia que seu barco sairia em dois dias para Belém. São os ossos do ofício, capitulou.
— Ê, Pipoca, lembra do velho Nerteiro? — Florêncio gritou para um dos homens de bordo, esquecendo momentaneamente o retorno.
Sentado à cobertura do barco, bem próximo à cabine, Pipoca não teve dificuldade em ouvi-lo apesar do barulho do motor.
— Se lembro! Lembro sim!
— Diz aí a todo mundo o que ele pediu de encomenda naquela viagem — e caiu na gargalhada.
— Digo sim, patrão! — e Pipoca se levantou na cobertura, pondo as mãos em concha em volta da boca: — Queria um afro...afrodisico...
— Afrodisíaco, seu peste! — corrigiu. — Um afrodisíaco de açaí e guaraná. Ele tava enrabichado com uma menina nova, que tirou do cabaré da Justina, e um turco, desses malandros, vendeu pra ele litros e mais litros do produto. A verdade é que arrancou o couro do velho — Florêncio voltou a rir.
A proximidade de casa acabava a sisudez dos homens. Relaxavam os músculos e mudavam bruscamente o humor. Em vez de praguejar por qualquer contratempo, contavam pilhérias. Não havia mais turbulência, as cachoeiras ficaram léguas para trás, agora o rio era uma lâmina azul onde o barco deslizava suave. Atrás dele ficava uma escama de peixe, a esteira do esforço do motor a diesel na água. Os moradores das chácaras e sítios ribeirinhos corriam para os altos barrancos do rio atraídos pelo barulho da buzina para saudar o São Félix de Carolina que passava.
—E quase que o turco acabou com as vaquinhas do velho, coitado — troçou o albino Pipoca escondendo do sol debaixo do chapelão de palha a cabeça de cabelos muito claros. — Patrão, mas parece que o danado do velho gostou do tal afro...afro...do remédio — continuou sem parar de sorrir.
Os outros homens também sorriram. Aos gritos para ser ouvido por todos, Florêncio não deixou o assunto morrer.
— Mas claro, Pipoca. Tanto que encomendou de Belém a gororoba por uma fortuna. E pagou mais ainda para eu fazer tudo sem ninguém saber.
— E ninguém ficou mesmo sabendo? — ecoou a voz de trovão do Cosme, homem forte, de corpo escuro e atarracado.
—Só tudo que é puta dos cabarés do rio — interveio Pipoca reprimindo o riso.
— E sabe o que depois eu perguntei pra ele, só pra saber se tava tudo certinho?
— Sei não, patrão! — respondeu a marinhagem numa só voz.
—Pois foi assim: “E aí seu Nerteiro, o tiro tá certeiro agora?” — e a algazarra do riso dominou o barco. — Mas num acabou não. Ele me respondeu, vermelho como pimentão maduro: “Cê tá curioso demais, homem!” E abaixou a voz num cochicho: “Sabe que a Filó tá até gostando”. E eu disse pra ele: “Num se avexe, que se quiser mais eu trago de novo”. E ele chispou dali num minuto, mas disse antes, piscando um olho, o danado do velho: “Quando acabar aquele, lhe procuro sim”.
jjLeandro
ESTE TEXTO É PARTE DE UM CONTO QUE INICIEI HOJE - O RESTANTE VEM DEPOIS - Ufffa!! Que pressa em publicar!
2 comentários:
Como sempre, seus contos são deliciosos.
Estou ansiosa pela continuação!
bjssssssss
JJ, que espetáculo!!!! Tô com a Bia. Muuito bom!!!!Afrodisíaco é o seu conto.rsrsrs
Sabe que me dá vontade de voar pra esse lugar e conhecer esses personagens (fictícios ou verdadeiros). rsrs
Um beijo e quero mais.rs
Parabéns, amigo!!!!
Postar um comentário