Continuação da postagem anterior
De repente Florêncio emudeceu e os homens trocaram olhares intrigados entre si. Parecia navegar em águas profundas, perdido em rios nunca navegados. Desconfiados, os homens ocuparam-se cada qual com sua tarefa. Só Delísio se aproximou mais. Companheiro de muitas viagens, o mais velho entre todos os homens da marinhagem, ele sabia que quando Florêncio se fechava era porque pensava em Bastiana, a sua mulher.
— O que foi compadre? — perguntou, afirmando em seguida: — Não se preocupe que a Bastiana vai estar no porto a sua espera.
Florêncio voltou ao comando do São Félix de Carolina surpreso por ter divagado tanto num segundo a ponto de o outro perceber. Tinha o olhar arrebatado dos que são pegos roubando. Ainda bem que estavam às portas de casa e não existiam mais armadilhas no rio. No sufoco de rebojos, cachoeiras ou travessões só era permitido pensar em livrar-se da morte — a mínima distração era o fim.
— Compadre, é nela mesma que pensei agora. Será que vai gostar do presente?
— Mas homem, e por que não haveria de gostar? Num viu não que o troço é a última moda nos cabarés de Belém? Viu como as mulheres ficavam alegres?
— É por isso mesmo, compadre. A Bastiana nunca foi mulher da vida. Peguei ela na casa dos pais. Será que ela não vai pensar que o presente é muita ousadia minha?
—Despreocupe, homem — disse uma vez mais, mudando o rumo da conversa com um sorriso acolhedor: — Tá ouvindo de novo?
— Sim, são os foguetes. Voltaram com força.
Delísio jogou o chapéu para cima e aparou-o novamente. Os outros oito homens haviam-no seguido no gesto entusiasmado. Florêncio puxava com força o cordão da buzina. O São Félix de Carolina apitava alegre, lançando o som da buzina muito além no ermo cerrado. A ponta da torre da igreja São Pedro de Alcântara apareceu de repente na distância incrustada no céu claro. Florêncio e os homens viram a paisagem dos barrancos se transformar lentamente. A presença familiar de bananeiras, goiabeiras e laranjeiras dos quintais das casas quebrava a monotonia selvagem do cerrado e fazia crescer neles a sensação de segurança, aliviando ainda mais o fardo da longa viagem de volta. O mês fora de casa pesava nas costas dos homens. Verem a paisagem onde cresceram, brincando e correndo todos os dias, restituía-lhes a alegria e a vida. Nessas horas Florêncio pensava mais forte em largar o serviço no rio. Passava mais tempo viajando que em casa. Não achava isso certo. Mas tudo que ele sabia fazer, como aqueles homens que viam as fruteiras dos quintais e os casebres pobres da beira rio como se fosse uma revelação, era labutar no barco até Belém. Sem o barco era como um peixe fora d’água — tinha certeza que não sobreviveria. Conhecia outros pilotos que tentaram a fuga da água e o resultado foi amargarem o fim bêbados à beira do rio, sem o favor de um patrão que lhes confiasse um barco para comandar, náufragos nas lágrimas dos próprios olhos. Preferia mil vezes enfrentar o inferno de Itaboca(1) que acabar como o Zeca Piloto ou o Tião Murerema.
— Sorria, homem! — foi novamente surpreendido por Delísio. — Olha lá o cais crescendo a nosso encontro.
E ele sorriu. Os homens de bordo começavam apressados a faina da atracação sob as ordens de Pipoca. O porto estava repleto de barcos e gente. O vento transformava a fumaça dos foguetes em fiapos que rápido eram dispersos. Algumas canoas pequenas corriam silenciosas para a margem. Muitas pessoas, delas protegidas por guarda-sóis, metidas dentro da água molhavam-se até os joelhos. Florêncio, os olhos ávidos, passava a multidão em revista procurando Bastiana. A convergência de pessoas para o porto era grande, mas a viu destacada contra o barranco no meio da multidão, uma mão acenando, a outra segurando os três filhos pequenos. A sua mulata de carnes fartas era inconfundível, sorriu com gosto afinal, tão colorida como um dia de sol. Nem o vestido multicolorido, que ele trouxera na última viagem a Belém, era mais vivo que ela.
— A minha Bastiana tá lá — disse num grito apontando para o barranco.
Delísio olhou para ele e cerrou o punho num sinal vibrante, como quem diz: “não falei?”
Florêncio passou com carinho a mão sobre o presente que trazia para a mulher. Estava a seu lado, na cabine de comando. Desde Tocantinópolis, no trecho mais tranquilo da viagem, quisera-o ali. Acariciava-o constantemente, como se o toque antecipasse o encontro com as carnes macias de Bastiana. Estava dentro de uma grande caixa e ali mesmo no porto, sem ligar para a surpresa das pessoas, ia mostrar-lhe.
Ligou pouco para o alvoroço de gente que cercou o barco e deu-lhe boas-vindas. Desvencilhou-se imediato de todo mundo, subiu a ladeira correndo, empurrando quem se colocava em seu caminho. Bastiana vinha já descendo a seu encontro, mas as crianças estorvavam-lhe o passo. Abraçou-a a meio caminho da água, sob a mangueira frondosa que dava a ilusão de o sol ter dado uma trégua. Mas nenhuma nuvem corria no céu naquele momento. Arrastou a mulher e os filhos até o barco. Subiram pela prancha à cabine, o São Félix de Carolina, o bombordo roçando o cimento do cais, sacolejava levemente ao sabor da marola das embarcações que chegavam ou partiam do porto.
Mostrou a grande caixa à mulher, mas ela, na grande excitação de ver o marido de volta, nada entendeu.
— É sua — ele gaguejou aflito.
— Minha?
— Sim, trouxe de Belém para você — e foi preciso subir a voz porque a algaravia no porto recrudescia com a aproximação dos comerciantes a procura de seus pedidos no barco.
Acanhada, ela procurou uma fuga.
— Flô, você não vai atender o pessoal?
— O Pipoca e o Delísio cuidam deles — e ele voltou a insistir: — Quer ver o seu presente?
—Se é meu, eu quero.
Bateu em Florêncio uma ponta de insegurança.
— Mas é para gostar, viu?
Ela concordou com um movimento de cabeça enquanto ele chamava aos gritos a marinhagem para retirar a caixa do barco.
— Aqui, aqui, aqui tá bom! — disse Florêncio suando em bicas pelo esforço de subir pela ladeira a caixa com o auxílio de três homens até a sombra da mangueira debaixo dos olhares curiosos de todo mundo que se encontrava no porto. Tinham paralisado o serviço para acompanhar a operação.
Florêncio quis não só presentear a mulher como transformar aquele momento numa grande atração. Sabia que o que a caixa continha seria uma surpresa geral, mas o que queria mesmo era com isso mostrar à população de Carolina que amava, e muito, a sua Bastiana. Não queria ser pedante. Bateu palmas, gritou, viu com o coração aos pulos Bastiana acanhar-se mais e mais à medida que as atenções se voltavam para eles. Florêncio, ao contrário, era só expectativa e excitação. Febrilmente com um pé-de-cabra desfez a caixa. Diante da intriga geral, apresentou com voz de pregoeiro o robusto móvel assentado sobre perninhas finas mas que guardava na lustrosa fórmica a sedução das coisas desconhecidas. Abriu a tampa, desceu as laterais, escondendo-as com os favores de pequenas dobradiças. Apareceu a vitrola. Não havia quem não tivesse os olhos presos sobre o artefato e na cabeça uma interrogação pronta a questionar — o que é isso?
Estendeu o braço para o móvel, vibrando a voz no vácuo que se fizera.
—Senhoras e senhoras de Carolina, apresento-lhes a vitrola a pilha que toca o disco LP!
E nas campinas do alto sertão maranhense, em 1953, alguém sabia o que era LP? Era bastante o inusitado de uma vitrola a pilha.
Mas nem precisou Florêncio esclarecer mais nada, Pipoca vinha correndo do barco em sua direção com as pilhas e o LP de 78 rpm. Sem perder um minuto, Florêncio abriu a parte traseira da vitrola introduzindo as pilhas, ligou a geringonça e conduziu com cuidado o braço para o disco que o ajudante depositara no prato. O som que retumbou lançou o povo para trás como uma onda de choque. A voz melodiosa do cantor ecoou uma canção de amor.
Admirada, até Bastiana se comoveu, dando voltas em torno da vitrola.
— O que é isso, Flô? Onde estão os músicos, homem de Deus?!
— Mas que músicos, mulher! Tá tudo aí dentro, no disco. Isso é a moda em Belém, a vitrola a pilha que toca LP.
E ali mesmo no porto Florêncio, ouvindo uma canção de amor, à sombra da mangueira, recebeu os apaixonados beijos de contentamento de Bastiana e várias encomendas de vitrolas e discos para a próxima viagem a Belém, que todos queriam possuir a novidade. Aliás, lá só não estava o Joca Nerteiro. Informaram-lhe que ainda se entretinha, recluso no sítio, com as novidades de Filó.
(1) - Complexo de cachoeiras mais temível de toda a extensão do rio Tocantins, desapareceu com a construção da Usina de Tucuruí na década de 1980. Ficava nas próximidades da cidade de Tucuruí.
jjLeandro
4 comentários:
É, meu caro amigo, o seu texto flui como o rio, sempre nos trazendo aos portos da nossa ancestralidade. Um belo texto! Parabéns!
Ai, JJ!!! Que conto lindo!!! Romântico,puro, arrojado... e tão rico em detalhes que me vi numa sessão de cinema.Pude visualizar todos os personagens (eu gosto disso) e vibrei com o momento em que Bastiana é apresentada ao "robusto móvel assentado sobre perninhas finas mas que guardava na lustrosa fórmica a sedução das coisas desconhecidas". D + essa sua descrição da vitrola a pilha.Perfeita, sabe ? Perfeitamente compreensível, tb, a ausência do Joca Nerteiro...rs
Cada um que curta suas novidades...ou "modernidades"...rs
Parabéns!!! Belíssimo conto!!!!
Um abraço
Valeu mais do que a pena esperar pela conclusão do conto.(não que tenha demorado).
Adorei Leandro, a gente entra nas suas estórias e sente como se estivesse no local!
É uma delícia!!!!
Beijos
Valeu Leandro!Já votei no seu blog com prazer e estou seguindo-o.Bj no coração.
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