sábado, 15 de setembro de 2007

DEFENDENDO A RAPADURA

Foto: Rapaduras - Osvaldo S. Melo





por jjLeandro

Assustei-me dia desses num retorno de viagem com a frente de minha casa tomada por uma récua de bestas que um almocreve e seus ajudantes conduziam, daquelas tradicionais que carregaram o Brasil às costas desde a época colonial até bem pouco tempo.
De início pensei tratar-se de um sonho — isso é coisa já fora de moda —, mas não era. Era uma cena bem real: pelo menos 15 burros e mulas, homens suarentos pela longa jornada e um cheiro doce de cana misturado ao suor agridoce dos animais.
No meio do tumulto, meu velho pai, Seu Zé, feliz e satisfeito aos 81 anos, conferia a carga acondicionada em resistentes jacás forrados com folha de bananeira. Sentia-se como nos tempos juvenis em seu indomável Nordeste, transportando dos açudes e cacimbas a água avara com que mitigava a sede de pessoas e animais.

Quando cheguei bem perto para saber a razão de tamanho rebuliço, ouvi já o fim da conversa dele com o chefe dos arrieiros, atestando o contentamento com o carregamento:
— Ótimo, tudo como combinado. Podem entrar.
Ele abriu o portão grande da garagem e sem qualquer cerimônia, como se eu fosse um ser invisível ou um simples intruso que desconhecesse o valor histórico daquela empreitada e merecesse ser expurgado, ignorou-me. Os homens, dois a dois, pegavam os jacás aos braços e sumiam casa adentro.
Voltei-me a seu Zé, que exultante esfregava as mãos, enquanto os homens cumpriam a tarefa de aliviar o lombo das bestas do pesado fardo.
— O que significa isso?
— São rapaduras que encomendei a um conterrâneo de um engenho aqui perto. Não são fabricadas em Pernambuco, mas o know-how é nordestino, genuinamente nordestino, a ponto de o autorizar o uso da identificação de origem: “From Northeast”. De fato, levantando o forro das folhas de bananeira, pude ver o apurado trabalho de empacotamento das rapaduras em caixas de buriti com o sinete marcado em fogo sobre cada uma delas: “Engenho Carnaíba – From Northeast for the World”.

Encabulei-me com o excesso. Comprar uma, duas, três rapaduras, vá lá. Isso era coisa corriqueira que fazíamos semanalmente nas feiras livres. Mas...2700 rapaduras de uma só vez se não fosse exagero, seria loucura.
Passei o braço sobre seus ombros e conduzi-o a um canto, longe das vistas e dos ouvidos do fornecedor das guloseimas:
— O que está acontecendo com o senhor? Não acha que é um exagero tudo isso? Onde vai colocar tanta rapadura?
— Tá bem, eu explico antes que me ache um louco.
— É bom mesmo — eu disse, suando e assustado.
— As rapaduras cabem bem na sua biblioteca entre livros e revistas. Ali era tudo uma bagunça só, até dei uma organizada durante sua viagem e veja lá que os espaços aumentaram.
Bati a mão na testa, desconsolado.
— Na minha biblioteca? É lá que vai guardar tudo isso?

Ele assentiu com a cabeça e continuou:
— Estou comprando tudo isso de uma só vez porque ouvi no noticiário que não vai restar na face da terra um único grãozinho de chão para plantar qualquer outra coisa que não seja cana-de-açúcar para a fabricação de etanol combustível. Esses usineiros são aves de rapina. Querem dinheiro, dinheiro e mais dinheiro. Você viu como está pulando de raiva o pessoal da soja e também os criadores de porcos e frangos? Isso é só o início. E eu já pus as minhas barbas de molho, afinal a parada vai ser dura e é já uma batalha perdida pois até o nosso presidente virou garoto-propaganda dessa cruzada.Do jeito que a coisa vai, até os árabes em breve estarão comprando o nosso álcool. E que ninguém se assuste com isso. Meu filho, a razão é essa: nada mais da cana, nenhum gominho dela sequer, vai sobrar para a nossa sagrada rapadura. E você sabe que sem rapadura é impossível a um nordestino sobreviver. Tudo agora vai para os carrões Flex. É o sinal do fim dos tempos, meu filho! Estamos bem perto dele.

Após seu veemente discurso, nada mais pude fazer a não ser resignar-me. Num tom apaziguador, concluí:
— Então tá bem, as rapaduras serão apenas essas!? Nada mais?
— As rapaduras sim! Mas semana que vem ele traz os 30 tonéis de aguardente que encomendei. Eu quero é ver o Lula bater à minha porta implorando um traguinho quando perceber que sua ardente defesa do etanol fez com que não sobrasse umazinha gota de aguardente nem para ele.