segunda-feira, 5 de fevereiro de 2007

UMA MISSIVA PARA A AMADA NA TERRINHA

DIÁRIO DE BAGDAD


Caríssima Maria,

Como foi difícil fazer esta missiva sair de minhas mãos e chegar a ti, ó querida!
Ia embalada em um belo pacote com papel impermeável e as forças de segurança a toda hora me paravam para averiguações em busca de bombas e assassinos que se destroem e a outrem nesses quadrantes. Não sei em que estado chegou aí, mas daqui saiu já em petição de miséria. Interessante que esses petardos, que tentavam adivinhar em mim, passam moucos às forças de segurança abraçados aos desnaturados que os conduzem. É aquele velho dito que nos causou tonturas no Brasil de tanto ouvi-lo: procuravam os gajos chifres em cabeça de égua– apropriado nesse caso que se use o cavalo, posto que sou eu o indivíduo em questão.
Mas bem, querida, estou a te escrever para relatar as agruras a que estou submetido aqui em Bagdad desde que em má hora pus os pés nesta terra conturbada a procura de agilizar um negócio que nos pusesse o pão à mesa. Por isso peço que se demore em aviar a tua vinda, que a tardança não é sinal de desapreço, mas de penúria pecuniária para te trazer a meus braços que sentem a tua falta, e na tua ausência vivem escondendo a cabeça no pavor das explosões. Saí da terrinha, o nosso bendito Portugal, com a ideia fixa e a cabeça cheia de esperanças de cá me estabelecer num ramo que floresce nesta terra que de santa nem o nome tem: as actividades funerárias. Era mesmo uma grande aposta, que se não fosse um negócio da China apropriado seria nomeá-lo do Iraque, pois que as agências de notícia expunham diuturnamente o caos desses atentados e os corpos mutilados de fazer dó dessas pobres criaturas. Nem nós portugueses, nas priscas eras do Império, fomos tão abusados e tão sanguinários como os que por aqui se destroem e destroem tudo ao derredor.
Mas estou esmorecido, como te antecipei, essa é palavra justa, ó querida Maria. Santa, ainda bem que não vieste comigo. Estarias a te debulhares em lágrimas com o sofrimento dessa gente e a penúria em que me meti. Com tanta morte, quase cem ao dia, justo se faz inferir que demanda tem, e os concessionários - por muitos que fossem seriam insuficientes para atendê-la – nem tantos são e ainda têm muitos deles a desventura de aqui e acolá se irem pelo espaço em algum evento explosivo, passando com propriedade de concessionário a cliente.
Ainda não me fui buscar um outro porto, um outro lugar para me estabelecer porque dinheiro não tenho. Vejas, vivo de déu em déu em busca de clientes, arriscando a pele aos lobos, quase queimando-me nas chamas dos atentados, interrompendo o choro das famílias em desespero com a desventura dos explodidos a procura de vender um esquifezinho que seja. O mostruário carrego à mala, com modelos que são um primor, mas não há, no infortúnio que se enredam, um só que queria pôr os olhos sobre ele.
É um povo que tem lá suas tradições, que aprendi a respeitar, e no aperreio da má fortuna, preferem enrolar seus mortos, ou o que sobrou deles, em sudários de linho ou depositá-los em toscos caixões de cedro. Transportam-nos muitos deles amarrados sobre os veículos e os enterram em grande transe de fé.
É, minha querida Maria, ó doce amada. Soubesse eu das tradições e conformidades dessa gente, não me teria arribado da terrinha com tanta pressa – acho que ditada pela cobiça - achando que vislumbrava um novo eldorado. Bem deve estar o Joaquim – e que tivesse eu ouvido o vosso conselho e vos seguido! – no negócio de morte que também se meteu ele, traficando armas na estremadura de Angola e África do Sul.
Minhas actividades funerárias estão bem de conformidade com o meu estado: a morrer neste exílio! É de bom alvitre te dizer que acredito que em pouquíssimo tempo estarei a dar com os burros n’água nesse empreendimento, como tão propriamente dizem os brasileiros (e que saudade eu tenho do pão quentinho de nossa padaria na Lapa que em miserável hora postergamos!). Acredito mesmo que isso só ainda não é verdade porque água por aqui é um artigo tão escasso como a paz. Mas se não é assim, de outra conformidade será, pois que temo por algo muito pior ainda: que não dando com os burros n’água tudo vá pelos ares consoante a realidade desta terra.
Antes que isso aconteça, que não sou burro, digo isto todo dia cá com os meus botões – acho que na tentativa de criar coragem -, se os ventos não me vierem a favorecer faço uma liquidação irresistível de todas as urnas, daquelas de matar qualquer um de inveja (como quando aí liquidei a quinta a bagatelas para me meter neste estúpido negócio das Arábias, que esse é o nome correto), ponho um tanto de dinheiro no bolso e volto para nossa pequena aldeia em Trás-os-Montes, de onde não devia nunca me ter ausentado com ideias de riqueza e lustre na cachola.

Do seu bom e inolvidável Manuel

Um comentário:

Saramar disse...

Leandro, sua criatividade é imensa, como se vê nesta delícia de crônica.
Apesar do tema pesado e triste, conseguiu um texto humano, apesar da guerra; divertido, apesar das mortes e romântico.
O pano de fundo pode ser claramente percebido, como se estivesse à nossa frente.
Gostei muito.

beijos