sexta-feira, 15 de julho de 2011

MEU TIO DE SÃO PAULO













O alvoroço tomou conta da casa de meu avô no verão de 1966.
Havia dois dias que chegavam telegramas informando o retorno de São Paulo de meu tio. Com a força das águas de um dique que se rompe, foi impossível manter a notícia nos limites do casarão secular. Minha mãe e os outros irmãos souberam da novidade e se alegraram com a iminente visita de um dos caçulas da família. Ele representava a concessionária de veículos Chevrolet de meu avô junto à fábrica em São Paulo e só aparecia em casa uma vez por ano. Saíra adolescente do interior do Maranhão para polir-se no luxo da capital paulista. Adquirira por lá hábitos que causavam estranheza no sertão, entre eles fumar com cigarrilha, usar blazer por cima da camisa e não dispensar chapéus elegantes.
Além de desfilar com lindas mulheres em São Paulo — as fotos com elas chegavam amiúde nas cartas noticiando suas turnês pelos pontos turísticos e balneários paulistas, agravando as crises de asma do patriarca, mas enchendo a mãe de orgulho —, amava os carrões.
Quase sufocado pelas crises asmáticas, o pai ainda conseguia dizer:
— Esse menino tá perdendo o rumo.
A mãe, por sua vez, defendia:
—Ele tá é se instruindo entre gente polida.
E sem fim chegavam cartas, fotos, pôsteres, postais. Ele e elas na serra, na praia, no campo; sempre em belos carrões e na companhia de lindas mulheres. Li atrás num dos retratos a epígrafe com pretensão de dedicatória: “Um bom dia começa com o sorriso de uma bela mulher”. Meu avô achou pernóstico, minha avó sorriu contente.  Mas ele tinha bom gosto, não se podia negar: não havia nas fotos uma só delas que fosse feia. A beleza era irmã siamesa da elegância. Elas desfilavam ricos vestidos e sublimes casacos, bolsas alinhadas e sofisticados penteados. As pulseiras brilhavam nos braços e as gargantilhas tocavam sem pudor os colos salientes.  Como para a morte, mal comparando, para a elegância não havia hora. E nos retratos ninguém jamais estava contrariado: os sorrisos alardeavam a felicidade interior. 
Meu avô corria transtornado os grandes salões do casarão, as crises de asma querendo esganá-lo, com minha avó atrás pisando seus calos sem trégua pronta para o rebate. Ele gesticulava e quase gritava para o mundo inteiro ouvir:
—Esse menino é perdulário.
Ela, pedindo silêncio para a vizinhança não ouvir, explicava o comportamento do filho sob a condescendente ótica materna:
—Ele sabe é viver.

Os últimos telegramas marcaram a data de sua chegada para daí uma semana. Como era característica sua, prometia trazer uma grande surpresa.
Nas rodas das conversas familiares explodiram especulações e apostas.
— Vem casado.
— Não, traz uma bela arma. Ele ama armas.
—Sim, mas ama também as mulheres.
—Mas no final do ano passado trouxe uma deslumbrante, esqueceu?
E a inveja reacendeu a memória:
—Que loira, que altura.
Risos sob o caramanchão.
—Alguém lembra o apelido que deram pra ela aqui?
Um tio:
— Varapau!
Novos risos. Minha avó abanando as mãos num pedido de discrição.
Uma tia:
—A mulherada daqui ficou foi despeitada. Também, coitadas, todas baixinhas.
Outra tia, eram oito na família:
—Ele não dava bola pras naniquinhas daqui, por isso desfeitearam a moça.
Em meu canto, copo de refrigerante à mão, invejava a sorte do tio, imaginando pelas conversas dos outros tios sua fornicação com lindas mulheres num luxuoso harém. A ingenuidade insinuava que trocas vantajosas são possíveis e podem custar barato. Assanhei-me: “Eu troco esse copo de refrigerante pelo harém, quer, tio?”
Os tios voltaram a especular.
—Se não vai trazer uma linda mulher, o que pode ser?
—Uma máquina fotográfica?
Desdém.
—Ele já trouxe algo mais magnífico: a radiola portátil.
—Pois então uma caneta-tinteiro de ouro para o velho.
Um cutucão reparador de memória.
— Ih, esqueceu tudo, hein? Isso aí tem dois anos que ele trouxe.
O silêncio no caramanchão anunciava o fim da fertilidade das ideias e a capitulação dos tios. Insinuei-me no vácuo da conversa com uma aposta que despertou o riso geral por eu ser criança em vez da censura recorrente entre os adultos.
—Ele vai trazer um carrão.
—Tá louco, menino?
—Nem estrada boa tem pra cá.
Defendi minha aposta.
—E como chegam os carros do vovô?
—Mas isso é outra história. Os carros do seu avô são pra vender — explicou um tio.
Ante tão veemente oposição, rendi-me afinal. Voltei ao meu copo de refrigerante e a uma nova oferta mental ao tio de São Paulo: “Aceita pelo carrão, tio?”

Na véspera da chegada dele ninguém entendeu mais nada. E tudo porque ele telegrafou dizendo que estava em Miracema. O que ele fazia lá à beira do rio Tocantins? O comum era chegar num dos voos que iam para Belém com escala em Carolina ostentando a pompa da família entre outros ilustres da cidade.
Meu avô uma vez mais às voltas com a asma:
— Desatinado que é deve estar vindo de barco.
Ele explicava no telegrama que fretara um motor em Miracema para embarcar a surpresa, pois era grande.
Quando o carteiro foi entregar o telegrama, as apostas recrudesceram com força ainda na sua presença. Havia uma pista: a surpresa era grande, coisa de monta. O estafeta não resistiu ao alvoroço e também deu seu palpite.
—Um elefante.
Meu avô, à porta de casa, tardou na resposta pois lutava contra o estrangulamento asmático. Mas foi ácido ao recuperar o fôlego:
—Lhe cabe nessa conversa?
Humilde, o homem encolheu os ombros, mas não ficou calado.
—Me pague o telegrama que eu tô caindo fora.
Com a vontade de esganá-lo ardendo no rosto, meu avô pagou-o. E ele, zás, deu no pé.

Não havia outra solução. No dia marcado para a chegada, a família foi toda ao porto esperá-lo. Inqueito sob a soalheira, meu avô jogava seixos do alto barranco dentro do rio com a ponta da bengala. “Clop, clop”, era o som do mergulho dos seixos dentro d’água. Os círculos sucessivos cresciam na lâmina lisa e azul até tudo voltar à plácida liquidez.
Alinhados no barranco, o porto era pobre e com péssima infraestrutura, não tinha sequer um galpão para embarque e desembarque, os irmãos e irmãs com as famílias alinhadas atrás de si pareciam promover uma concentração cívica. Mas não eram objetos de mofa. As grandes famílias tinham seus dias de concentração cívica nas recepções no porto ou no aeroporto. Quando isso acontecia amiúde com uma família, causava até uma pontinha de inveja nas outras. A assiduidade festiva era sinal de status, poder.
Um curioso barqueiro, esquivando-se entre o burburinho do porto, cabelos batidos pelo banho recente no rio para mitigar o calor, aproximou-se de meu avô.
Major — muitos o conheciam assim na cidade —, esperando alguém?
Meu avô incomodado. Era monossilábico quando se sentia desconfortável.
—Meu filho.
—Aquele de São Paulo? — tornou o outro com cara de quem conhecia a resposta.
—Sim.
—Vem de barco de Miracema?
—Sim.
A pequenez da cidade corroía como ácido a intimidade até expor a vida alheia.
—O carteiro me disse que ele alugou barco em Miracema. Parece que vem trazendo uma coisa grande.
—É.
—Não será um circo? O carteiro disse que tem até um elefante.
—Essa gente comenta demais por aqui — foi a resposta de meu avô, afastando-se do homem para encerrar o diálogo.
Foi refugiar-se na algazarra da vintena de netos pequenos atrás dos pais. Ali foi acolhido com sorrisos e abraços que quase tiravam a sisudez de seu paletó negro. Num raro momento de descontração, tirou o chapéu escuro de feltro e colocou-o na cabeça de uma das netas menores. O enxame de outros netos que queriam repetir a brincadeira fê-lo recolher o chapéu apressadamente e voltar a proteger do sol forte a própria cabeça.
A inquietação voltava na família à aproximação do cais de cimento de qualquer barco descendo o rio. Dedos apontavam o horizonte líquido, pescoços se espichavam por trás de cabeças para melhor visualização da cena, passos eram contidos para não precipitar corpos ladeira abaixo até a água a qualquer sinal de ameaça que ‘dessa vez é ele.’
Mas ele chegou após horas de espera. O seu barco surgiu como um pontinho distante, um grão de areia num oceano de água. Uma vez mais o comentário geral: “Agora é ele”. E era. O motor veio crescendo para o cais, gordo, disforme. A aproximação delineou suas formas. Não era só um motor. Trazia algo atravessado sobre a cobertura. Um carro! Um carrão para bem casar a imagem à palavra. Recebi vários cumprimentos dos tios que se lembraram do meu prognóstico: “Ele vai trazer um carrão!” Quem dentro do carro? Ele, meu tio. O carrão era um Impala conversível 1963. Sentado ao volante ainda servia-se de uísque escocês quando o motor atracou. Não havia trazido mulher dessa vez. Era isso que os olhos ávidos de meu avô procuravam após convencer-se que aquilo não era só um sonho ruim.  Menos mal. Mas meu tio foi pródigo na distribuição de uísque para a tripulação. De Miracema a Carolina, constatamos depois, consumiram seis litros do mais puro escocês. Os litros vazios acumulavam-se sobre o banco de couro vermelho e o soalho do carro.
O trajeto do porto ao casarão na praça, meu tio sorridente ao volante do imponente Impala conversível acenando para os amigos, meu avô no banco traseiro acusando constrangimento nos pigarros asmáticos, um cordão dos outros carros da família atrás, talvez tenha sido o primeiro desfile em carro aberto que aconteceu na cidade. Em questão de minutos o Impala tornou-se objeto dos comentários em Carolina.
Para desassossego de meu avô, a partir do dia seguinte, a todo instante um mensageiro lhe dava notícia de onde estavam o filho e o Impala conversível: “No barranco do rio com as putas”, “No Lajes tomando banho com as amigas”, “No Itapecuru com os amigos”.
Era esse o meu tio de São Paulo que sempre surpreendia a família em suas visitas anuais.


jjLeandro


.
 Foto: Impala 1963 -  

Nenhum comentário: