domingo, 5 de junho de 2011

O ÉDEN URUGUAIO

A cidadezinha uruguaia perdida nos confins dos Pampas, embora insulada, orgulhava-se de ser exemplo mundial, apontada em todos os índices pesquisados por organizações internacionais como expoente cisplatino e americano de desenvolvimento humano.
Incensada, coube ao rotundo alcaide receber o mundo curioso com tal sucesso. Entre delegações e organismos internacionais que visitaram Edenburgo, ele agora explanava com o dedo gordo e liso numa lousa na sede do município, para uma delegação latinoamericana, por que sua pequena cidade justificava o nome, sendo a primeira em tudo: o maior PIB per capita, o maior IDH, a cidade mais habitável e verde das Américas. Com tantas aprovações, orgulhava-se até mesmo de exibir um único menos entre tantos mais: a menos corrupta das Américas.
Pois bem, quando falou-se do último item, a delegação latinoamericana passou a ouvir tudo com o habitual ceticismo — a maioria brasileira entre os delegados era a mais arredia —, desejando descobrir um senão que invalidasse o discurso do velho gordo que em seu paletó negro parecia um antigo general da independência cisplatina sufocado na armadura ao expor a seus comandados a tática de batalha.
E ele dizia num discurso político sincero que as pesquisas internacionais chancelavam: ‘somos a joia das Américas, senhores; nossa população estabilizou-se há décadas; dinheiro sobra nos cofres da cidade (houve uma inquietação na delegação, como se molestada por pó de mico; mas eram os delegados procurando a direção do cofre); nem mais hospitais e escolas construímos, só pintamos e modernizamos os já existentes, pois a demanda é a mesma há trinta anos. A nossa grande preocupação, senhores, é saber o que fazer com o ativo acumulado nos cofres municipais (novo frisson na sala). Estamos estudando dividi-lo igualmente entre a população, pois dinheiro precisa circular para gerar mais riqueza, assim entendem os papas da economia.’
O gordo alcaide empolgara-se diante de uma assistência que lhe invejava os recursos disponíveis e desprezava-lhe a honradez. Os delegados xeretavam disfarçadamente o tapete para ver se debaixo dele não havia lixo acumulado — nada; os cinzeiros de areia ao pé das poltronas para descobri-los transbordando de pitocos de cigarros — eram apenas alegoria; poeira nos móveis — impolutos; paredes com pintura descascando — ainda recendiam ao frescor da tinta. Poltronas e cadeiras desconjuntadas — eram fortes e vistosas. Desanimavam com o que viam para onde deslocassem as vistas. Imaginavam com um calafrio na espinha: a honradez e a transparência repugnam como cadáver decompondo. Sufocavam-se com a aura pacata que impregnava o ar, desejavam rapidamente encerrar a visitar e voltar quando ouviram um charivari vindo da rua. Ao ser humano qualquer coisa que insinua familiaridade produz imediatamente confiança e conforto. E assim se sentiram os delegados: transportados às facilidades da terra natal. Estavam assim enlevados quando irrompeu sala adentro, em completo transe, que muito deixou a delegação alegre porque quebrava a insossa fala do alcaide, um homem escandalizado, que pensaram buscar salvação de mãos assassinas. Era o secretário de obras públicas e desenvolvimento social de Edenburgo. Não fugia de um homicida, era de algo pior: vinha comunicar ao alcaide que na rua principal da cidade, a bem tratada e florida calle Independência, a população estuporava-se diante de uma desgraça: um buraco no asfalto!
O alcaide, explanando as excelências da pequena Edenburgo diante dos ilustres visitantes, foi ao outro mundo e voltou. Parecia agora um general vencido, a sudorese que lhe manchava o paletó era como marcas do gládio inimigo.  Só ele e o secretário tinham as faces congestionadas, imóveis pela gravidade da notícia; a delegação inteira abria um sorriso de contentamento maior que o sol estival. E os delegados precipitaram-se num tropel escada abaixo para a rua. O alcaide e o secretário secundaram-nos. Na rua a comoção popular era grande. Era justo avaliar: caíra ali no centro da rua um meteoro. Mas não, era algo ainda mais terrível para os padrões da dignidade  edenburgueana: um buraco no asfalto! Os homens e mulheres da delegação frustraram-se diante do que viram: um único, um único e minúsculo buraco no asfalto. Para mensurar com exatidão a polêmica: era meio arredondado e não tinha raio maior que dez centímetros.
Diante do buraco, o alcaide rápido recuperou o sangue-frio e o controle da situação. Com um discurso vibrante para munícipes que confiavam em seu comando, foi contundente: ‘amigos de Edenburgo, é chegada a hora de uma providência saneadora, vamos remover este velho asfalto e colocar um novo em seu lugar em toda a extensão da calle.’
Foi aplaudido demoradamente.
Após o discurso, um delegado brasileiro puxou-o pela manga do paletó para aconselhá-lo com os princípios de excelência da nossa administração pública:
— Alcaide, por que não faz como nós no Brasil? Lá somos mais rápidos e eficientes, com menos transtornos para a população.
O alcaide, sem nunca ter saído de Edenburgo, interessou-se:
— Mesmo? E como fazem?
— Operação Tapa-buraco na rua, na sua calle, e Arromba-cofre no tesouro municipal.
— ????
E ele escancarou-se porque pensava falar a um igual:
—Isso mesmo, alcaide. Tapamos o buraco, dizemos que asfaltamos a rua toda e compramos propriedades com o restante da verba desviada.
Diante do cenho franzido de indignação do alcaide, ele se defendeu:
— O senhor sabe, temos pouco tempo, são apenas quatro anos de mandato.


jjLeandro

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