sexta-feira, 22 de abril de 2011

MEU PAI

José Leandro, meu pai, conhecido por Pajeú, de Carnaíba - PE







Difícil falar de meu pai como sempre achei difícil falar de anjos. Deixo claro que meu pai não era anjo, mas a sua candura habilitava-o a ser uma dessas entidades se elas existissem. Reside aí a minha dificuldade de descrevê-lo: como falar de alguém que a gente imagina perfeito quando a própria perfeição é uma medida da qual se desconfia por não sabê-la verdadeira.
Mas vamos lá, meu pai existia sim, aliás, foi muito presente na minha infância apesar da discrição com que conduzia os negócios e a família. O seu emblemático bigode negro estava ali ao meu lado constantemente. Usava este ícone nordestino — nunca abandonado, apenas viu esmaecer a cor até quase nevar na velhice —, creio, como uma forma de equilibrar candura e respeito.
Eu achava a paz de seus olhos verdes no rosto de nariz afilado, só ardentes com os filhos e mesmo assim com parcimônia, em permanente descompasso com o seu interior em ebulição. Não podia um homem daquele, de alma migratória, ser tão plácido no rosto e em ações com tantos passos atrás de si.
Pouco depois de abandonar sua casa no agreste pernambucano, a mãe desesperada pela viagem dele ao Piauí — e depois para Goiás — e de outros dois filhos a São Paulo cometeu suicídio. Enlouquecida, imaginava-os devorado por onça em Goiás e sendo roubados e mortos em São Paulo. Era demais para aguentar. Mas a tragédia familiar não abalou a inaudita paz de espírito dele. E não era insensível, a força e a rapidez com que se entregava a uma tarefa contrariavam qualquer prognóstico neste sentido. Desde solteiro sempre fora uma locomotiva no trabalho, costurando numa só noite em Floriano, durante sua passagem pelo Piauí, quatro centenas de sacos para colocar o sal que grandes atacadistas faziam chegar à cidade pelo rio Parnaíba. Ou então o paletó, também feito numa noite, para o chefe político tomar posse como prefeito. A máquina de costura não parava na alfaiataria com que ganhava dinheiro para custear as suas andanças na migração. Só ele não temia aceitar esses desafios. E quando alguém, preso a dificuldades de última hora o procurava, era com prazer que aceitava a tarefa quase impossível. Rápido o giz e a régua à mão constituíam-se afirmação eloquente. Em sua estada em Floriano corriqueiramente os alfaiates diziam quando uma proposta desafiadora surgia em seus ateliês: “só o Zé Leandro é capaz de resolver esse problema enquanto o diabo esfrega um olho”. E resolvia mesmo!
Foi assim, de déu em déu, que chegou em Carolina em cima de uma carga alta de caminhão, enfrentando chuva e os atoleiros de areia na estrada de Balsas. Roupas amarrotadas e sujas de lama não derrotaram sua obstinação. Desceu do carro e pôs bagagem e maquinário da alfaiataria a um canto da pequena pensão assobiando uma cantiga do sertão. Estabeleceu-se por lá numa das últimas etapas no roteiro para Goiás, e da noite para o dia, como nas outras cidades, saiu do anonimato com a realização de tarefas hercúleas. Mas em Carolina a coisa foi diferente. Sentiu sem opor resistência pela primeira vez a ameaça de embaraçar-se pelo caminho. É que enquanto costurava não tirava um olho do avanço da linha sobre o tecido e o outro da moça esbelta, queixo fino, doces e sonhadores olhos castanhos, o recato expresso em cada sorriso contido, que todo dia cedo, ainda com o cheiro da madrugada no ar, o surpreendia com a alfaiataria aberta no caminho para o colégio. Talvez imaginasse impressionada: ‘esse homem não dorme nunca’. Tão logo a filha do comerciante Félix Bringel passava, ele saltava da máquina, recompunha apressado o colete sobre a camisa de algodão,  corria à porta, dava passos desorientados na calçada, cofiava o bigode negro e implorava com os olhos grudados nas espáduas bem desenhadas da menina que ela girasse a cabeça para vê-lo. Parecendo ouvir suas súplicas, Tereza voltava levemente a cabeça e os olhos dos dois se encontravam. Era o suficiente para o coração dele galopar. Sentia-se sobre o cavalo correndo nas vaquejadas do sertão para derrubar o novilho na zona de pontuação sob a ovação pública. Ou então em doidos galopes na caatinga seca, driblando a morte em cada moita de imbuzeiro, quixabeira ou imburana.  Ansiado, tomava sôfregos goles do café frio do bule, pulava na máquina com disposição febril e pedalava até sentir câimbras na panturrilha. Os olhos ardiam da febre do amor e do serão a que se obrigava. Tereza seguia para o colégio das freiras, o olhar casto mirando o chão e sofrendo no íntimo a retaliação à ousadia do gesto. Com outras moças de família aprendia francês, a língua estrangeira dos amantes, completamente inútil para aplacar o íntimo tempestuoso do migrante pernambucano; lia a bíblia sob orientação das irmãs religiosas, mas a via prenhe de sofrimentos e estéril de sonhos românticos. Só a língua portuguesa lhe era receptiva e adivinhava nela a serventia para as cartas com juras de amor.
Com a mesma pressa com que cortava e costurava um tecido, José Leandro armou o bote para conquistar a filha do comerciante. Bastaram umas poucas trocas de olhares, um sorriso envergonhado dela, uns olhos dele que acariciavam e despiam com igual intensidade e pressa, para ele, ligeiro como o sedento se entrega à fonte no deserto, ir enfrentar o homem moreno e baixo, pai da moça. Típico mascate cigano ou judeu, rendido às necessidades de uma família numerosa e da asma que quase o tornou inválido, enfim abandonou as incômodas andanças pelo interior do Maranhão para ver de detrás do balcão os filhos multiplicarem a descendência. Enfrentar o major, como Félix Bringel era chamado na cidade, não foi obstáculo para quem vinha de uma terra onde os homens caminham entre balas durante o dia e orientam-se por seus rastros luminosos à noite.
A família e os vizinhos admiraram o topete do alfaiate recém-chegado indo à casa comercial de Félix Bringel falar namoro a uma de suas filhas. Não seria brincadeira de mau gosto ou uma aposta com colegas gaiatos?, quis saber o comerciante com cara azeda. Não, não e não!, protestou. Ele era homem sério, sem tempo para perda com piadas. Ademais tinha já trinta anos e nem antes nem agora se daria ao trabalho de perder tempo com gabolice. A alfaiataria regurgitava de serviço, nem rede tinha para dormir que o trabalho não deixava, até um ajudante contratara em poucos dias na cidade. Melhor gastar tempo com o ofício que lhe remunerava bem que sair dando uma de doido em casa de família.

Falou claro e convincente. Diante de tanta determinação o velho olhou à esposa, que deu de ombros passando-lhe procuração; olhou à filha aflita, os dedos apertados nos braços cruzados atrás do corpo, as vistas abaixadas à espera do veredito. No meio do salão comercial, José Leandro esperava. Como já botara o nervosismo para fora junto com o pedido, esperava pacientemente a resposta.
Cochichos entre os interessados e a decisão:
— Ela disse que quer, então vocês podem começar a se conhecer. Mas há uma condição — e Félix Bringel criou suspense enquanto expelia a tosse seca da asma. — Os encontros têm que ser aqui em casa, uma noite por semana.
O alfaiate saiu radiante, querendo abraçar as pessoas que via pela rua. Enfurnou-se na oficina por toda a noite, batendo pedal até o dia amanhecer.


jjLeandro

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