sexta-feira, 16 de abril de 2010

VINTE E QUATRO HORAS PARA A MORTE - UM EPISÓDIO NA DITADURA BRASILEIRA

Imagem: Montagem com fotos do período da Ditadura brasileira

E há hora para morrer? Bem, os verdugos podem marcá-la, mas à revelia de Pedro Poliche. Pode ser também que os suicidas escolham a hora com rigor, mas pensar nisso é ir às raias do macabro. Ninguém, que ele soubesse, havia conversado com um suicida sobre isso. Nem qualquer deles havia exposto escrupulosamente e com antecipação, detalhes e horário, seu plano de sumir deste mundo. Se assim fosse, o previsível é que tivesse seu propósito abortado por alguma providência que o impedisse de atentar contra si mesmo. Seria a suprema desmoralização. Não, um suicida não confessa a decisão extrema. Simplesmente executa-a. Por isso o suicídio é sempre uma surpresa para os familiares ávidos por um bilhete, uma carta, escondido nalgum móvel, segredando as razões da ação desesperada.




Mas Poliche queria fugir da morte e não era suicida. Estava vivíssimo e com muita vontade de viver. Não havia em sua personalidade qualquer traço depressivo, surto psicótico ou insegurança que gerasse ansiedade e pudesse diagnosticá-lo como potencial suicida. E mais: não tinha raiva de si mesmo e muito menos estava de mal com o mundo. Poliche era jovem rico e bonito, universitário, e em perfeita sintonia com as aptidões e os desejos de um rapaz de sua idade: garotas, sexo, festas e bebidas. Por estar assim bem resolvido com a vida, aos seus olhos o sol que nascia não só fazia o mundo ganhar cores e vibração conforme avançavam as horas. Tocava de maneira especial o seu íntimo, exultando de felicidade como se fosse transbordar. Beatífico momento para ele esse do sol nascendo ou se pondo.


Mas não nas circunstâncias do momento.


Universitário politizado, dirigente estudantil, quadro do Partido Comunista, Pedro Poliche andava metido em conspirações contra a Ditadura agonizante. Era final de 1982, ela dava os últimos suspiros, não mais matava — a menos que de maneira acidental e não mais “acidental” —, mas ainda mordia. Naquele momento Pedro Poliche tinha receio disso: uma mordida desproporcional que causasse um acidente. Estava preso o rapaz na Polícia Federal havia algumas horas. Incomunicável desde o final da tarde. A passeata dos estudantes fora reprimida ao sair da praça da universidade. Uma ação temerária forçar a barra, concluíra na incomunicabilidade, como fazem os guerreiros solitários após a derrota. Ainda se agitavam em sua mente as principais cenas do distúrbio recente: a praça cercada de PMs, cachorros rosnando sobre a multidão contidos pelas trelas até a hora certa de morder. Agentes da PF infiltrados, disfarçados, marcando os líderes com os disparos rápidos de suas máquinas fotográficas. Um coro forte de vozes após o último discurso e a decisão contagiante de romper o cerco: vamos à praça do Palácio! A turba arrancou como um só corpo, causando nos milicos, diante de tanta determinação e coragem, segundos de vacilo. A coragem dos estudantes recrudesceu. O passo atrás dos PMs fê-los invadir com mais determinação a avenida de pista dupla. Um ímpeto de represa rompida, cuja grande massa líquida se espraia pelo vale sem obstáculo capaz de conter sua fúria. Mas os PMS, treinados para distúrbios de grande magnitude, reagiram rápido, lançaram bombas de gás na multidão, deixaram os cães livres para morder. Gritaria geral, atropelos, cassetetes abrindo cabeças, escudos da tropa de choque encurralando moças e rapazes indistintamente. Os milicos multiplicaram-se ou os manifestantes escapuliram pelos becos e esquinas para fugir à prisão? Ficaram poucos, catados à unha pelos PMs. Entre eles, Pedro Poliche. Manietado pelas algemas, não resistiu à fúria da polícia. Agarrado pelos cabelos, pernas e braços, foi jogado no camburão. Caiu flácido lá dentro, com som de quarto de gado jogado no carro para transporte até o açougue. Era impossível saber o que era hematoma do tombo ou das porradas.




Pouco interessava isso a Poliche no momento. Rememorava aflito cada quadro do seu filme particular desde a chegada à delegacia da PF. Queria pistas que indicassem que rumos o seu caso tomaria.


A primeira acusação:


—É comunista!


Fixou na retina a imagem do homem suado, olhos em transe, de cascavel. Rosto gordo e untuoso. Fumava um cigarro atrás do outro. Agitava um dossiê e extraíra dele um punhado de fotos suas discursando em várias manifestações. Tinham ali mais fotos suas que ele próprio em casa. Se a ocasião fosse outra, sorriria. Concentrou-se tanto na figura patética do delegado que o som da voz dele sumiu. Agitava-se a sua frente, com os papéis e as fotografias à mão, em mímica de quem espana poeira de móveis. Os gestos agressivos dilatavam a cena, devoravam os sons.




O delegado se foi, vieram os agentes. Conduziram-no a uma sala pequena de paredes lisas, nenhum móvel, uma clarabóia na parede filtrava uma luz avarenta para o interior. O teto alto prendia uma lâmpada. O som dos pardais era audível. Havia algum pátio interno com árvores no complexo maciço da delegacia para serem ouvidos assim. E o canto das aves empurrou Poliche para a intangível infância com pardais e figueiras na casa paterna, onde se sentia seguro, sem milicos nem PFs. Ligeirinho voltou à realidade. A porta grossa do pequeno cômodo era de metal com um quadrado com barras maciças. Antes que tirasse suas próprias conclusões, um dos agentes disse sarcástico:


— Sua gaiola.


Ficou ali horas lutando contra medos e fantasmas. Não tinha relógio, tiraram-no à entrada. Soube que a noite chegara pela penumbra invadindo lentamente o espaço restrito. Em pouco tempo começou a desaparecer. Primeiro seus pés sumiram, depois as canelas, os joelhos. Passados alguns minutos só via as mãos se as pusesse diante dos olhos. Ficou cego. Piscava os olhos freneticamente, mas tudo era escuridão. Tivessem abertos ou fechados: escuridão. A certeza de ainda estar vivo trazia-a o distante chiar de rodas de carros no asfalto. Os estudantes iam à universidade.




Voltou ao cubículo escuro. Refletiu sobre sua condição. Para sua sorte, diziam que a Ditadura não tinha mais tanta ferocidade. Estava desmoralizada e perdia força. A despeito do quanto diziam era ainda uma Ditadura. Os generais no poder ainda ostentavam orgulhosos suas fardas com galões e medalhas de batalhas imaginárias. Conservavam a mesma cara dura talhada em mármore, expressões enérgicas, tão mais enérgicas quanto mais o poder esvaía de suas mãos. Pareciam-se muito ao General da Banda, caricatura da peça infantil representada no seu colégio, que comprava furtivamente condecorações em brechós e bricabraques para impressionar nos desfiles da semana da Pátria. Eram ridículos como sempre o foram, sorria sem muita vontade, mas ainda podiam ostentar força. Isto o preocupava. Assaltou-o uma ideia a princípio absurda, mas que o isolamento foi dando contornos reais: iriam executá-lo secretamente? Quantos foram vitimados assim? Entraram num órgão de segurança da Ditadura e evaporaram. Viraram triste estatística nos róis dos grupos de defesa dos perseguidos políticos. Lembrava que havia no Centro Acadêmico uma lista dos mártires dos tempos de chumbo num estudo cuja pequena biografia se interrompia no momento da prisão e do consequente sumiço. Procurou rememorar nomes presentes lá, querendo as datas das quedas, para a sua própria segurança, distantes do dia de sua prisão. Buscava um alento que comprovasse que a Ditadura agora só mordia, e cada vez menos. Eles foram aparecendo em sua mente: Virgílio Gomes, codinome Jonas, em 1969; o jornalista Vladimir Herzog, em 1975; o operário Manoel Fiel Filho, em 1976; os ítalo-argentinos Horacio Domingo Campiglia e Lorenzo Ismael Viñas, militantes do grupo Motoneros, em 1980. Entrou em pânico, cortou imediato o fio do pensamento. Sumia a coragem de recordar como se isso o eximisse de riscos, pois as datas se aproximavam perigosamente do dia de sua prisão. Quis entreter-se com sons que viessem do pátio para afastar as recordações aziagas. Buscou-os desesperadamente. Mas os pardais dormiam, os homens, sorrateiros, armavam ciladas em surdina, a cidade acusava o descanso noturno. O silêncio era opressivo, sentia-o penetrar em seu cérebro com a mesma intensidade dos gritos do delegado federal quando procurava intimidá-lo com o dossiê. Não podia opor resistência.


CONTINUAÇÃO EM PRÓXIMAS POSTAGENS
 
jjLeandro

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