segunda-feira, 22 de junho de 2009

VITROLA A PILHA - CONCLUSÃO



Continuação da postagem anterior

De repente Florêncio emudeceu e os homens trocaram olhares intrigados entre si. Parecia navegar em águas profundas, perdido em rios nunca navegados. Desconfiados, os homens ocuparam-se cada qual com sua tarefa. Só Delísio se aproximou mais. Companheiro de muitas viagens, o mais velho entre todos os homens da marinhagem, ele sabia que quando Florêncio se fechava era porque pensava em Bastiana, a sua mulher.

— O que foi compadre? — perguntou, afirmando em seguida: — Não se preocupe que a Bastiana vai estar no porto a sua espera.
Florêncio voltou ao comando do São Félix de Carolina surpreso por ter divagado tanto num segundo a ponto de o outro perceber. Tinha o olhar arrebatado dos que são pegos roubando. Ainda bem que estavam às portas de casa e não existiam mais armadilhas no rio. No sufoco de rebojos, cachoeiras ou travessões só era permitido pensar em livrar-se da morte — a mínima distração era o fim.

— Compadre, é nela mesma que pensei agora. Será que vai gostar do presente?
— Mas homem, e por que não haveria de gostar? Num viu não que o troço é a última moda nos cabarés de Belém? Viu como as mulheres ficavam alegres?
— É por isso mesmo, compadre. A Bastiana nunca foi mulher da vida. Peguei ela na casa dos pais. Será que ela não vai pensar que o presente é muita ousadia minha?
—Despreocupe, homem — disse uma vez mais, mudando o rumo da conversa com um sorriso acolhedor: — Tá ouvindo de novo?
— Sim, são os foguetes. Voltaram com força.

Delísio jogou o chapéu para cima e aparou-o novamente. Os outros oito homens haviam-no seguido no gesto entusiasmado. Florêncio puxava com força o cordão da buzina. O São Félix de Carolina apitava alegre, lançando o som da buzina muito além no ermo cerrado. A ponta da torre da igreja São Pedro de Alcântara apareceu de repente na distância incrustada no céu claro. Florêncio e os homens viram a paisagem dos barrancos se transformar lentamente. A presença familiar de bananeiras, goiabeiras e laranjeiras dos quintais das casas quebrava a monotonia selvagem do cerrado e fazia crescer neles a sensação de segurança, aliviando ainda mais o fardo da longa viagem de volta. O mês fora de casa pesava nas costas dos homens. Verem a paisagem onde cresceram, brincando e correndo todos os dias, restituía-lhes a alegria e a vida. Nessas horas Florêncio pensava mais forte em largar o serviço no rio. Passava mais tempo viajando que em casa. Não achava isso certo. Mas tudo que ele sabia fazer, como aqueles homens que viam as fruteiras dos quintais e os casebres pobres da beira rio como se fosse uma revelação, era labutar no barco até Belém. Sem o barco era como um peixe fora d’água — tinha certeza que não sobreviveria. Conhecia outros pilotos que tentaram a fuga da água e o resultado foi amargarem o fim bêbados à beira do rio, sem o favor de um patrão que lhes confiasse um barco para comandar, náufragos nas lágrimas dos próprios olhos. Preferia mil vezes enfrentar o inferno de Itaboca(1) que acabar como o Zeca Piloto ou o Tião Murerema.

— Sorria, homem! — foi novamente surpreendido por Delísio. — Olha lá o cais crescendo a nosso encontro.
E ele sorriu. Os homens de bordo começavam apressados a faina da atracação sob as ordens de Pipoca. O porto estava repleto de barcos e gente. O vento transformava a fumaça dos foguetes em fiapos que rápido eram dispersos. Algumas canoas pequenas corriam silenciosas para a margem. Muitas pessoas, delas protegidas por guarda-sóis, metidas dentro da água molhavam-se até os joelhos. Florêncio, os olhos ávidos, passava a multidão em revista procurando Bastiana. A convergência de pessoas para o porto era grande, mas a viu destacada contra o barranco no meio da multidão, uma mão acenando, a outra segurando os três filhos pequenos. A sua mulata de carnes fartas era inconfundível, sorriu com gosto afinal, tão colorida como um dia de sol. Nem o vestido multicolorido, que ele trouxera na última viagem a Belém, era mais vivo que ela.

— A minha Bastiana tá lá — disse num grito apontando para o barranco.
Delísio olhou para ele e cerrou o punho num sinal vibrante, como quem diz: “não falei?”
Florêncio passou com carinho a mão sobre o presente que trazia para a mulher. Estava a seu lado, na cabine de comando. Desde Tocantinópolis, no trecho mais tranquilo da viagem, quisera-o ali. Acariciava-o constantemente, como se o toque antecipasse o encontro com as carnes macias de Bastiana. Estava dentro de uma grande caixa e ali mesmo no porto, sem ligar para a surpresa das pessoas, ia mostrar-lhe.

Ligou pouco para o alvoroço de gente que cercou o barco e deu-lhe boas-vindas. Desvencilhou-se imediato de todo mundo, subiu a ladeira correndo, empurrando quem se colocava em seu caminho. Bastiana vinha já descendo a seu encontro, mas as crianças estorvavam-lhe o passo. Abraçou-a a meio caminho da água, sob a mangueira frondosa que dava a ilusão de o sol ter dado uma trégua. Mas nenhuma nuvem corria no céu naquele momento. Arrastou a mulher e os filhos até o barco. Subiram pela prancha à cabine, o São Félix de Carolina, o bombordo roçando o cimento do cais, sacolejava levemente ao sabor da marola das embarcações que chegavam ou partiam do porto.

Mostrou a grande caixa à mulher, mas ela, na grande excitação de ver o marido de volta, nada entendeu.
— É sua — ele gaguejou aflito.
— Minha?
— Sim, trouxe de Belém para você — e foi preciso subir a voz porque a algaravia no porto recrudescia com a aproximação dos comerciantes a procura de seus pedidos no barco.
Acanhada, ela procurou uma fuga.
— Flô, você não vai atender o pessoal?
— O Pipoca e o Delísio cuidam deles — e ele voltou a insistir: — Quer ver o seu presente?
—Se é meu, eu quero.
Bateu em Florêncio uma ponta de insegurança.
— Mas é para gostar, viu?
Ela concordou com um movimento de cabeça enquanto ele chamava aos gritos a marinhagem para retirar a caixa do barco.

— Aqui, aqui, aqui tá bom! — disse Florêncio suando em bicas pelo esforço de subir pela ladeira a caixa com o auxílio de três homens até a sombra da mangueira debaixo dos olhares curiosos de todo mundo que se encontrava no porto. Tinham paralisado o serviço para acompanhar a operação.

Florêncio quis não só presentear a mulher como transformar aquele momento numa grande atração. Sabia que o que a caixa continha seria uma surpresa geral, mas o que queria mesmo era com isso mostrar à população de Carolina que amava, e muito, a sua Bastiana. Não queria ser pedante. Bateu palmas, gritou, viu com o coração aos pulos Bastiana acanhar-se mais e mais à medida que as atenções se voltavam para eles. Florêncio, ao contrário, era só expectativa e excitação. Febrilmente com um pé-de-cabra desfez a caixa. Diante da intriga geral, apresentou com voz de pregoeiro o robusto móvel assentado sobre perninhas finas mas que guardava na lustrosa fórmica a sedução das coisas desconhecidas. Abriu a tampa, desceu as laterais, escondendo-as com os favores de pequenas dobradiças. Apareceu a vitrola. Não havia quem não tivesse os olhos presos sobre o artefato e na cabeça uma interrogação pronta a questionar — o que é isso?

Estendeu o braço para o móvel, vibrando a voz no vácuo que se fizera.
—Senhoras e senhoras de Carolina, apresento-lhes a vitrola a pilha que toca o disco LP!
E nas campinas do alto sertão maranhense, em 1953, alguém sabia o que era LP? Era bastante o inusitado de uma vitrola a pilha.

Mas nem precisou Florêncio esclarecer mais nada, Pipoca vinha correndo do barco em sua direção com as pilhas e o LP de 78 rpm. Sem perder um minuto, Florêncio abriu a parte traseira da vitrola introduzindo as pilhas, ligou a geringonça e conduziu com cuidado o braço para o disco que o ajudante depositara no prato. O som que retumbou lançou o povo para trás como uma onda de choque. A voz melodiosa do cantor ecoou uma canção de amor.

Admirada, até Bastiana se comoveu, dando voltas em torno da vitrola.
— O que é isso, Flô? Onde estão os músicos, homem de Deus?!
— Mas que músicos, mulher! Tá tudo aí dentro, no disco. Isso é a moda em Belém, a vitrola a pilha que toca LP.
E ali mesmo no porto Florêncio, ouvindo uma canção de amor, à sombra da mangueira, recebeu os apaixonados beijos de contentamento de Bastiana e várias encomendas de vitrolas e discos para a próxima viagem a Belém, que todos queriam possuir a novidade. Aliás, lá só não estava o Joca Nerteiro. Informaram-lhe que ainda se entretinha, recluso no sítio, com as novidades de Filó.

(1) - Complexo de cachoeiras mais temível de toda a extensão do rio Tocantins, desapareceu com a construção da Usina de Tucuruí na década de 1980. Ficava nas próximidades da cidade de Tucuruí.


jjLeandro

sexta-feira, 19 de junho de 2009

VITROLA A PILHA

Foto: jjLeandro (Rio Tocantins em Babaçulândia)



O barco apitou na curva do rio. Insistentemente anunciava a chegada. Era sempre assim quando os barqueiros regressavam de uma viagem a Belém. Queriam todo mundo no cais para festejar o sucesso da volta. Na partida, o choro da incerteza transfigurava os rostos; no retorno, as lágrimas de alegria lavavam a alma. E desde que Florêncio se entendia por gente nada mudara. Há gerações seguidas na família todos eram homens do rio. E antes de aprender isso com o pai, seu pai aprendera com o avô; e o avô com o avô dele. O estardalhaço na chegada era um costume que ninguém contestava, vinha ele então pensando nisso enquanto puxava com mais e mais força, a intervalos, o cordão da buzina. Queria a cidade toda no cais, e muito mais agora que trazia de Belém uma grande novidade.

Lamentou ter esquecido de comprar os foguetes para marcar de longe a alegria do retorno. Mas fora tão grande a correria das compras, de atacadista a atacadista em Belém, que não conseguiu evitar o lapso. Em pouco tempo, ao ser ouvida a buzina em Carolina, começariam espaçadas as explosões dos fogos. Quando o barco aparecesse como um pontinho escuro na lâmina azul do rio Tocantins, e a cidade soubesse que os foguetes já podiam ser ouvidos com nitidez aí os tiros se tornariam mais constantes.

Então Florêncio se sentiria recompensado com juros das dificuldades dos descarretos e das infernais cachoeiras. Arrepiaria de corpo inteiro. Nas viagens em que os obstáculos do rio se mostravam quase incontornáveis, quando soçobrar parecia iminente e se livrava milagrosamente no último instante — e eram tantas essas ocasiões —, a saudação da volta tinha mais emoção. Facilmente ia às lágrimas ouvindo o tiro familiar dos foguetes. Sentia-se amparado entre sua gente, era como se cada um morador pegasse à sua mão para auxiliá-lo — e lembrar então os perigos dos violentos rebojos e travessões do rio, tendo por companhia só água e mata, fazia-o chorar. Olhando a marinhagem, também os homens na alegria do choro voltados para ele, extáticos e mudos, dizia quase inaudível: “estamos a um tiro de foguete de casa”.


O barco avançava lento, pesado, as mercadorias abarrotando os porões e a camarinha. Os homens dormindo sem reclamar sobre fardos e caixas. Levavam de tudo para o comércio local. Os pedidos se amontoavam sem critério em caixas de madeira e sacos de aniagem. A carga que saíra bem arrumada de Belém estava agora jogada de qualquer jeito. E não era para menos com tantos descarretos para salvaguardar as mercadorias da fúria das corredeiras do rio. Havia sal, ferragens, bebidas e calçados. Em algumas viagens um pedido inusitado era feito, muitas vezes sob sigilo, para evitar a vexação pública de quem encomendara.

Florêncio riu enquanto navegava nas águas remansosas do início da vazante. Timidamente algumas pontas de areia já se insinuavam, alvas sob sol forte, na parte interna das curvas do rio. Vai ser um ano bom de praia, pensou, pois as chuvas se foram cedo demais, ainda em meados de abril.

Sorriu novamente acuado pelas lembranças. Deu um grito à marinhagem ordenando comportamento à chegada. Continuou pensando. Decerto no cais estaria também o Joca Nerteiro, proprietário de um sítio nas redondezas da cidade. Coitado do velho, sorriu com malícia. Lembrou do caso dele. Fora procurado pelo Nerteiro no bar do porto, o do Dió, o preto velho do Piauí. Dois dias antes de uma de suas muitas viagens bebia com outros pilotos de embarcação comemorando antecipadamente a partida. A conversa não tinha muita variação, ia do rio e suas malditas cachoeiras ao grande comércio de Belém; não faltavam também no assunto as noitadas nos braços das putas com muito álcool na cabeça nos cabarés. O velho Joca viera protegido pelas sombras das grandes mangueiras, mas ainda assim arfava e suava muito. Talvez fosse de constrangimento, pensara depois Florêncio. O certo é que chegara bem perto dos pilotos quando a conversa era de grande interesse aos homens: um dos pilotos falava sobre uma nova mulher num cabaré de Tocantinópolis. E todos iriam querer se encontrar com ela num quarto imundo na próxima viagem. Ficara por ali ouvindo um pouco, tomando fôlego, calado. Pediu uma dose de pinga, bebeu, pôs o copo sobre o tosco balcão da venda espantando as moscas com o movimento, e lambeu os lábios. Pigarreou e tocou timidamente no ombro de Florêncio. Quando este se voltou, Nerteiro parecia ainda menor do que era. Queria uma conversa reservada. O piloto olhou-o com má vontade. Sair da companhia dos amigos àquela hora era quase sacrilégio. Reinaldo ia dizer onde encontrar a puta. Atendê-lo à hora da revelação lhe desagradava. Mas vai que queria uma encomenda, todo mundo sabia que seu barco sairia em dois dias para Belém. São os ossos do ofício, capitulou.

— Ê, Pipoca, lembra do velho Nerteiro? — Florêncio gritou para um dos homens de bordo, esquecendo momentaneamente o retorno.
Sentado à cobertura do barco, bem próximo à cabine, Pipoca não teve dificuldade em ouvi-lo apesar do barulho do motor.
— Se lembro! Lembro sim!
— Diz aí a todo mundo o que ele pediu de encomenda naquela viagem — e caiu na gargalhada.
— Digo sim, patrão! — e Pipoca se levantou na cobertura, pondo as mãos em concha em volta da boca: — Queria um afro...afrodisico...
— Afrodisíaco, seu peste! — corrigiu. — Um afrodisíaco de açaí e guaraná. Ele tava enrabichado com uma menina nova, que tirou do cabaré da Justina, e um turco, desses malandros, vendeu pra ele litros e mais litros do produto. A verdade é que arrancou o couro do velho — Florêncio voltou a rir.

A proximidade de casa acabava a sisudez dos homens. Relaxavam os músculos e mudavam bruscamente o humor. Em vez de praguejar por qualquer contratempo, contavam pilhérias. Não havia mais turbulência, as cachoeiras ficaram léguas para trás, agora o rio era uma lâmina azul onde o barco deslizava suave. Atrás dele ficava uma escama de peixe, a esteira do esforço do motor a diesel na água. Os moradores das chácaras e sítios ribeirinhos corriam para os altos barrancos do rio atraídos pelo barulho da buzina para saudar o São Félix de Carolina que passava.

—E quase que o turco acabou com as vaquinhas do velho, coitado — troçou o albino Pipoca escondendo do sol debaixo do chapelão de palha a cabeça de cabelos muito claros. — Patrão, mas parece que o danado do velho gostou do tal afro...afro...do remédio — continuou sem parar de sorrir.
Os outros homens também sorriram. Aos gritos para ser ouvido por todos, Florêncio não deixou o assunto morrer.
— Mas claro, Pipoca. Tanto que encomendou de Belém a gororoba por uma fortuna. E pagou mais ainda para eu fazer tudo sem ninguém saber.
— E ninguém ficou mesmo sabendo? — ecoou a voz de trovão do Cosme, homem forte, de corpo escuro e atarracado.
—Só tudo que é puta dos cabarés do rio — interveio Pipoca reprimindo o riso.
— E sabe o que depois eu perguntei pra ele, só pra saber se tava tudo certinho?
— Sei não, patrão! — respondeu a marinhagem numa só voz.
—Pois foi assim: “E aí seu Nerteiro, o tiro tá certeiro agora?” — e a algazarra do riso dominou o barco. — Mas num acabou não. Ele me respondeu, vermelho como pimentão maduro: “Cê tá curioso demais, homem!” E abaixou a voz num cochicho: “Sabe que a Filó tá até gostando”. E eu disse pra ele: “Num se avexe, que se quiser mais eu trago de novo”. E ele chispou dali num minuto, mas disse antes, piscando um olho, o danado do velho: “Quando acabar aquele, lhe procuro sim”.


jjLeandro

ESTE TEXTO É PARTE DE UM CONTO QUE INICIEI HOJE - O RESTANTE VEM DEPOIS - Ufffa!! Que pressa em publicar!

sábado, 13 de junho de 2009

VERSO SEM METRO

Verto verso
Sem metro
Porque não sei
Medir as palavras.

Mas meço o meu decoro
Nos versos que digo ao mundo
As palavras nem sempre são limpas
Mas meu poema nunca é imundo.


jjLeandro

domingo, 7 de junho de 2009

MINHA AURORA

Ah,
Se eu fosse Deus,
Não iria borrar
Todo dia uma
Aurora diferente.
Só queria ter
Em todos os amanheceres
de minha vida
presa entre meus braços
a minha Aurora escolhida.


jjLeandro

sábado, 6 de junho de 2009

GESTAR A MORTE

Afiar a faca
aninha a morte
no corte
com esmero
para entrar macia
no ventre em desespero.

jjLeandro