sexta-feira, 17 de abril de 2009

JOELMA

Joelma era uma jovem correta. Nem mesmo os hábitos de moça rica que o salário de moça pobre não conseguia custear tiravam-lhe a qualidade de manter os compromissos em dia. Não tiravam, mas criavam um problema de difícil solução já que o resultado dessa equação era sempre negativo.

A pobre moça era secretária de um grande frigorífico de uma pequena cidade do interior — único em muitos quilômetros nas redondezas. Os olhares invejosos das outras moças da periferia onde vivia faziam-na inflar como uma bexiga de festa que não teme espinho. E todas elas ameaçavam-na como espinhos pontiagudos a quem Joelma preventivamente, com maligno zelo e perverso gosto, fazia questão de quebrar as pontas. A soberba era tanta que nem mesmo o gado, que via todo dia seguir ordeiramente em fila para o fim sem nada suspeitar, fazia-a desconfiar que suas finanças caminhavam igualmente para o fim. Dizem por aí, e não somente os despeitados, que o excesso de confiança é antolho a favorecer a queda no precipício ao primeiro contratempo. Mesmo assim estava Joelma.

Em casa a desculpa com que justificava à mãe o desequilíbrio nas finanças não era a vaidade, embora isso se revelasse de corpo inteiro, mas a obrigatoriedade de se apresentar bem vestida, maquiada e perfumada, com acessórios de última moda por exigência de ser uma das secretárias da diretoria. “A senhora quer que eu seja a última da fila de promoção e a primeira da fila da dispensa, quer?” Falava por sua boca a prepotência, como Deus falava pela dos anjos. E a mãe, coitada, resignava-se afinal. Antes ter pouco na panela todo dia, que nada o dia todo. E a filha era só quem tinha no mundo para dar-lhe de grão em grão, como sempre calha aos galináceos e em algumas vezes também aos humanos.

Joelma era a rainha do crediário. Nas butiques da pequena cidade só não era tomada por moça rica porque esses povoados têm o grande defeito de tornarem as pessoas íntimas em demasia. “Um dia ainda corrigem isso, e será o paraíso”, se assim pudesse pensar, Joelma não teria remorso algum, mas grande regozijo na alma. Veja como ela comentava esse vício de reality show com as outras secretárias do frigorífico: “ixe, que aqui parece que as pessoas dormem todas juntas”.

Apesar de sua aparência dar mais nas vistas que conjuntivite no verão, Joelma era moça que preservava o quanto podia a sua privacidade quando o assunto era dinheiro. Não gostava de futricas, que isso era coisa de desocupado aposentado — dizia isso ela e não eu, que nunca fui presidente da República para sair com tais tiradas. Ninguém sabia quanto gastava com as exigências do trabalho, um segredo sob sete chaves — e tantas mais poria se o provérbio não achasse que muitas seriam. Era um tanto aqui numa butique, tanto mais noutra ali; na cabeleireira, presa até os cabelos — para ser consoante; nas casas de produtos de beleza os débitos eram como pó de face, uns sobre os outros. Estica daqui, espicha dali, honrava os compromissos, pois, como eu já disse, ela não queria o seu nome na boca do povo, ainda que a voz do povo fosse a voz de Deus. Ao paraíso chegaria de outro modo e por méritos próprios: quem sabe por um bom casamento.

Tudo deu errado quando a crise bateu à porta do frigorífico. Primeiro os europeus do leste, os maiores compradores, trocaram a carne de primeira pela de segunda num paliativo que haveria de ser breve. Por lá também se roia a carne até o osso. Nem isso deu jeito, e suspenderam os contratos de vez. Felizes ficaram os bois que prorrogaram a vida, e só eles. Joelma entrou no rol dos dispensados. Só quando chegou ao olho da rua, abriu o olho. Já era tarde. As dívidas são como os remédios: têm prazo de validade. Foram vencendo, vencendo, e Joelma honrou quantas pôde com o que recebeu da indenização trabalhista. Mais não podia fazer, que ela e a mãe tinham que comer. Ainda não conseguiram que brisa enchesse barriga. E já estavam quase a angu para salvar as aparências. À custa desse regime forçado soube que beleza não põe mesa.

A primeira providência, não por má-fé, como todas as outras que se seguiram, foi não passar na porta dos credores. Não queria que eles a esquecessem com essa decisão — seu nome estava na nota promissória, era impossível. Era antes para evitar a vergonha de ser chamada a entrar e esclarecer que demora era aquela, que nunca fora assim caloteira. Depois deu para se esquivar até em casa. Quando o telefone tocava, a mãe dizia que não estava. Se o cobrador vinha, por trás das cortinas, olhava disfarçadamente e empurrava a mãe — a cara amarrotada de vergonha e fome — a dizer que andava em busca de dinheiro, que não ficava em casa parada nem fabricava lá dinheiro, pois nem máquina tinha para isso.

Quando o cerco apertou, pois cidade pequena é uma lástima, todos têm a vida de todos à mão, e já pensavam que andasse a se esconder, aproveitou uma carona de um parente e na calada da noite — esse velho chavão é oportuno para o momento — fez poeira para a capital. Incutiu à mãe que não fugia, e nem precisava, pois mãe acredita de olhos fechados nos filhos — é como o povo com os políticos. Ia à busca de emprego, para se manter e a ela, e para saldar as dívidas.

Pela capital ficou dois anos. Cansaram-se os credores, que ouvir a mesma ladainha todo dia só não cansa nas missas das igrejas. Cansaram-se, mas não a esqueceram. Estavam de atalaia como cachorro ganindo de fome: ao primeiro sinal dela, avançariam. Sabendo disso e por ter caráter, as circunstâncias é que foram adversas naquele momento da vida, juntou dinheiro na capital, fazendo o quê não se sabe, nem importa. O que importa é que voltou para limpar o nome. E faria, por ter caráter, está visto, claro, mas também porque os órgãos de proteção ao crédito — e são abundantes como pobre no mundo — são como polícia política: metem o nariz onde não são chamados, e mesmo sem estarem com os olhos em cima da pessoa atrapalham a vida de quem deve e não paga.

Antes que os credores a descobrissem e corressem atrás, desconfiados que ali estivesse só de passagem, e não era assim, reafirmo aqui, procurou todos. As contas de menor valor saldou à vista. Não comprou mais, nem lhe ofereceram novo crédito — podia estar arquitetando um golpe maior na praça, essas desconfianças existem. Restou uma única conta, a maior, a da butique mais glamurosa da cidade. Lá os seus débitos eram como bananas em penca, ou melhor, infindáveis como desculpa de político — uma vez mais eles aqui, é que se metem em tudo sem serem chamados. Mas estava determinada. Não deixaria nem um rabo de palha onde as linguarudas da cidade tocassem fogo. Discretamente, como era costume seu em relação ao dinheiro, negociou. Vai daqui, vai dali, a conta é velha, não tem jeito, tem sim, corte juros, quero pagar, fale baixo senão o mundo escuta. Vou fazer sim porque já me danei; mas não faço mais isso, que está claro que quem vê cara não vê coração. O pior do brasileiro é só fechar a porta depois do roubo, mas aqui não se trata de roubo — é uma negociação. Nem todo provérbio pode ser inescrupulosamente usado, por isso vamos parar com eles por hora. Rolo muito já basta o de Joelma. A demorada negociação foi toda em surdina, parecendo quando ela fugiu de carona para a capital. Mas deu em acordo: uma entrada e mais dois anos em pequeninas parcelas. Foi negócio de pai pra filho (um machismo da língua portuguesa), mas ajustado entre mulheres.
Da butique Joelma, a alma leve, foi direto ao melhor supermercado da cidade. Queria que a vissem fazendo compras, que pensassem que na capital os ventos lhe tivessem sido favoráveis e abundantes, que a vida antiga ficara para trás e não era nada mais para ela que prestações a perder de vista. Pôs o que precisou num carrinho e ficou dando voltas pelos corredores: oi, oi, tudo bem, tudo bem. Eram sorrisos e mais sorrisos para os conhecidos, como os polidos e formais aos compradores e fornecedores nos tempos de frigorífico.

Quando ouviu seu nome sendo citado no serviço de alto-falante do supermercado, de início pensou que ficara famosa. Davam-lhe as boas-vindas, que chique. Mas alegria de pobre dura pouco — eles mesmos dizem isso, não esse cronista. De fato o serviço de alto-falante assim dizia, e vamos tudo reproduzir:
“Atenção senhora Joelma Florinda da Silva, está aqui no guichê de achados e perdidos um documento de seu interesse”. E para que não houvesse dúvida de que era seu mesmo o papel, a moça foi detalhando o conteúdo: “É um contrato de renegociação de dívida com a Butique All Love, vencida há três anos, ajustado o parcelamento em vinte e quatro vezes. Por favor, procure-nos e resgate o seu documento”.

Joelma teve vontade de se emplumar como as avestruzes, para meter a cabeça em um ralo de esgoto qualquer por ali. Deixara, na pressa de se mostrar, cair ao chão o contrato de renegociação da dívida. Algum gaiato pegou o papel e, crendo que tudo que está no chão e é papel tem um dono e ali está porque foi perdido, deixou-o no guichê. As pessoas, muitas conhecidas e outras não, olhavam pelo supermercado para ver se Joelma dirigia-se ao guichê. Mas ela, claro, discreta como só, lá não apareceu. Deixou o carrinho como estava e saiu sorrateiramente por uma das portas enquanto os clientes grudavam o olho no guichê.

Se o parente ainda estivesse em casa, calharia nova carona à capital.

segunda-feira, 13 de abril de 2009

DOMINGO EM FAMÍLIA


Foto: http://www.carroantigo.com/imagens/HUMOR/01_B.JPG


Era a primeira vez que o candidato a genro visitava a casa da namorada. A mãe dela, Clotilde, marcara com uma semana de antecedência um churrasco para recepcionar o rapaz no domingo. Nada poderia dar errado. Era mulher metódica, que trazia anotada na agenda até a corriqueira missa do domingo. Mas, com os diabos!, era pleno mês de maio e as chuvas ainda se faziam abundantes, sem alívio. Pela madrugada do domingo o toc-toc insistente da água sobre a caixa do condicionador de ar do quarto acordou Clotilde. Cutucou o marido com o cotovelo nas costelas, ele acordou de um sono profundo no qual se embaralhavam mulheres e dinheiro, abriu os olhos e não enxergou nada na escuridão, um sobressalto foi a sua reação:
— O que houve, onde estou?
Clotilde trouxe-o ao mundo real com sua voz de espinhos:
— Será que essa chuva vai atrapalhar o nosso churrasco?
Amâncio recolheu-se à concha do lençol com uma imprecação:
— Vá perguntar a São Pedro, ora bolas!
— Estarei com ele mais tarde na igreja; e ele haverá de me explicar esse boicote.
Mas não houve igreja nem explicação. Quando o dia amanheceu, a chuva ainda estava lá, resistente, sem sinal de ceder. O jeito foi fazer a filha correr ao telefone, ligar para o Bento e dizer numa voz de seda — não usual em Perpétua:
— Benzinho, o churrasco gorou...é a água, sabia? Não tem onde pôr a churrasqueira. O carvão molhou, e com esse tempo não pode ser dentro de casa. A fumaça ia emporcalhar tudo. O pai pintou a casa tem duas semanas.
— E como vai ser? — ele pediu esclarecimentos.
Um sorriso anêmico do outro lado da linha.
— Vai ser frango assado com salada, você gosta, não?
— Tá bem, a picanha fica para outro dia — e desligou.

Eram já dez horas e a chuva, sabe como é, deixa a gente com as fibras do corpo encolhidas. O resultado é a preguiça. Para Clotilde o domingo seria mesmo imperfeito. Se perdera até a missa por causa da chuva, nada mais interessava. Nem mesmo fazer a corte ao candidato a marido para a filha — que a beleza não trouxera à linha e a aposentadoria do pai ferroviário tentava colocar nos trilhos — tinha mais sentido. Por isso seria de qualquer jeito, qualquer remendo estaria bom. Noutra oportunidade tudo sairia a capricho. Para correr atrás do frango assado para o almoço, Clotilde fez Amâncio molhar os pés e a cabeça.

— Vá lá, homem, pega o carro e busca o frango.
— Que frango, mulher? — defendeu-se Amâncio, também ele filho de Deus, refugando a chuva.
— É para salvar as aparências, afinal o rapaz vem com chuva ou sem chuva. Compre um frango assado com farofa para o almoço lá no açougue. O resto eu improviso aqui mesmo.
O irmão menor de Perpétua correu na frente, abriu o portão e pulou dentro do carro, pingando água:
— Vamos pai, vem logo senão não pega mais frango.

Vencido, Amâncio foi. Um tempo depois voltou com o frango e a farofa.
Ainda faltava algum tempo para o Bento chegar e para o frango não esfriar, Clotilde envolveu-o em papel alumínio e colocou-o em uma pequena caixa de isopor. Rápido arrumou uma salada de legumes fria, arroz, feijão e maionese com vagem e batatinha. Beijou a ponta dos próprios dedos reunidos, lançando-os depois para adiante num gesto de satisfação.

O resto foi fácil: a toalha de linho sobre a mesa, a mesma com que recebia o padre italiano para os bolinhos das tardes de sábado, os pratos de porcelana — presente das amigas do emprego público no seu casamento —, os copos de cristal — os seus pais que deram, ufa!, e como economizaram para comprar — para a bebida, os talheres — eram de aço inox, que os de prata custavam a cara toda e não só os olhos! —, os guardanapos, também de linho, e as confortáveis cadeiras. Ao final da arrumação Clotilde olhou, angulando a cabeça: estava satisfeita. A filha, uma sombra atrás dela, juntava as mãos em prece, dava passinhos adiante e atrás, olhava e olhava, e sem palavras concordava.

Tocou a campainha.
— É o Bentinho — disparou Perpétua para a porta sacudindo as mãos em aflição.
E era mesmo. Perpétua e Amâncio seguraram o rapaz na sala enquanto Clotilde punha tudo à mesa. O irmão caçula, na cozinha com Clotilde, recebia desta as últimas instruções de civilidade à mesa. “Se não se comportar, leva uma coça quando ele sair”, foi a instrução final. Plácido, um nome fora de propósito, em seus doze anos, concordou.

Mas tudo correu normal até quase o fim. Um verdadeiro almoço dominical em família. Clotilde apenas debicou a comida, a todo instante repuxava os músculos da face num sorriso. Amâncio perdia-se em atalhos, ausente, como se manobrasse ainda locomotivas no pátio da estação. Perpétua, vez ou outra, levava o garfo à boca. Nervosa em agradar Bentinho, suas mãos não davam folga ao guardanapo, amassava-o, amassava-o e amassava-o. Plácido parecia um centroavante de futebol estacionado na grande área: esperava a sua vez. Quem mais tirou proveito do almoço foi mesmo Bento. Devorou ao menos metade do frango com muita maionese e farofa. Clotilde muito passeou seus olhos gordos sobre o candidato a genro.
Ao final do almoço, Bento quebrou o silêncio.

Amâncio estacionara sua locomotiva e quase já abandonava o posto, Clotilde segurou-o discretamente pelo braço para ouvirem Bento:
— Olha, dona Clotilde — e ela fez-se toda ouvidos e sorrisos —, o almoço estava uma delícia. É preciso ser cozinheira de mão cheia para assim, de última hora, improvisar um frango assado tão delicioso. Da farofa, um petisco, não vou nem falar. Depois, por favor, dê-me a receita do frango, quero levar para a minha mãe.
Foi quando Plácido disparou na área para marcar o seu gol:
— Ih, você vai ter que pedir ao açougueiro, o pai comprou o frango no açougue lá da praça.


jjLeandro

quinta-feira, 9 de abril de 2009

GLOBALIZAÇÃO



Foto: http://hidrogenioalpha.files.wordpress.com/2008/02/hamburger7.jpg

Os antropófagos
Do mundo inteiro
Abdicaram da carne humana.
Só comem hambúrguer,
Que é comida americana.