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A ORELHA
Esta história já conta tempo que a ouvi. Sete ou oito anos. Mas esse interregno não é confiável, pois essas histórias - por serem tantas - idênticas em diferentes lugares mais parecem folclore que fato real.
Juraram-me que esta aconteceu, mas invariavelmente assim diziam em todas as pensões de interior – onde eu descansava à noite do dia atribulado de vendedor de tecidos. Ouvia muitas histórias à espera da hora de dormir, à luz da lua sob uma árvore, que naquela época a luz elétrica não chegava a todos os rincões com a mesma velocidade do homem. Era praxe só contar a história depois de convencer o interlocutor de que ela era veraz, com isso garantindo uma aura de autenticidade à narrativa e excitação ao ouvinte. Eu aceitava o jogo e deixava-me enlear às primeiras palavras, abrindo caminho à imaginação criativa do fabulista. Aquele me disse:
— Senhor, o juramento é um velho código de honra de cavalheiros. E quando feito sobre o sangue derramado, torna-se impossível transigi-lo.
Assim aconteceu com Jerônimo Macedo, comerciante do lugar, meio século atrás. Ele era então um velho de oitenta anos e viu-se com tão avançada idade diante do último desafio de sua vida: vingar a morte do único filho restado adulto entre os tantos que concebera e a morte tomou-lhos sem condescendência.
Em Gaudêncio Macedo depositava, pois, uma esperança quase terminal, como a vida que já se ia extinguindo em seu semblante taciturno e encarquilhado, de sucedê-lo à frente dos negócios ainda em vida. Em momentos de desalentada reflexão, lamentava a tirania do destino e a imperfeição dos seres humanos: talvez entre os filhos que não vingaram estivesse o que seria a sua cópia no caráter e nos negócios. Mas logo se rendia à fatalidade e contentava-se com o que lhe restara, talvez temendo que sua inconformidade com os desígnios superiores fosse punida com o castigo de também perder o único filho vivo: antes com um do que sem qualquer!
Gaudêncio Macedo não sucedeu ao pai nos negócios.
Ele foi assassinado numa rodada de pôquer por um homem frio e cruel, temido sem conta na região; e a notícia do infausto acontecimento quase fez descerem juntos à sepultura o combalido pai e o filho arroubado. Quem presenciou o crime arbitrou que Gaudêncio teve razão de acusar o adversário de trapacear com as cartas – só não pôde prever a reação virulenta do trapaceiro. E aqui as conjecturas são tantas que só reafirmam as incertezas da vida. Mas o mais provável é que por ser jovem e impetuoso ou então por uma dessas fatalidades que fazem da vida uma sucessão de imprevistos tenha negligenciado a periculosidade do adversário. O desenlace foi um trágico tiro na testa, à queima-roupa, que varou a cabeça do jovem Macedo.
A razão não lhe poupou a vida.
Para o pai, sofredor de gota e obrigado a uma exaustiva jornada de trabalho que a idade e a doença faziam penosa, o crime foi quase o fim; e culpava-se pela desgraça do filho, acreditando que a atraíra com os constantes pensamentos que punham em dúvida a competência dele. Mas o velho teve forças, e reagiu. A despeito de tudo, a lembrança do filho carinhoso embora perdulário embalou no velho Macedo o espírito de vingança. Arrancou do passado, com sofrimento e dor, tumultuadas recordações que imaginava definitivamente sepultadas nos desvãos da memória junto com os muitos homens que ousaram opor-se-lhe. Até a gota conheceu alívio diante de outras dores maiores que consumiam sua força e sua atenção. De mais a mais, havia jurado vingança sobre o corpo do filho morto, e por aquelas bandas um homem que jura e não cumpre com a palavra empenhada é um impotente.
Jerônimo Macedo agiu rápido, o ódio lhe era vital, e quem o conhecia surpreendeu-se com a vida que rejuvenesceu seu semblante de doente terminal. Em pouco tempo ele teve a ficha do criminoso em mãos, e pôde ter conhecimento do quão ele era perigoso. Mas em todos os seus oitenta anos a covardia nunca foi um sentimento que o impedisse de tomar uma decisão importante; e sem dúvida, aquela era a mais importante de sua vida – não havia recuo possível.
Raciocinou com frieza e quantificou vantagem para si: era poderoso e astuto; e a astúcia – de conluio com o poder – pode mais que o instinto sanguinário de um homem.
Ele próprio desejava resolver a questão, mas a avançada idade e os achaques não lhe permitiam ser mais como antigamente. Precisava, portanto, de um pistoleiro. Foi demorada a seleção: o assassino incutia medo aos mais destemidos aventureiros. Lamentou que a vida o fizesse passar o vexame de – como um incapacitado – depender de outro homem para resolver uma questão de foro íntimo. E quase com um remorso tardio, lembrou da insensatez da própria juventude quando favorecia Madalena, sua vizinha fogosa, cujo marido era impotente. Sentia agora no íntimo a mesma dor do marido traído quando descobriu o relacionamento dos dois e quedou-se impotente, como de fato o era. Por fim um homem de feia catadura resolveu correr o risco da empreitada mais preocupado em embolsar a sedutora recompensa – que crescia junto com as dificuldades da missão.
O velho Macedo descreveu o matador do seu filho e frisou as peculiaridades que ele tinha: um brinco de argola à moda antiga dos piratas na orelha esquerda e, no lóbulo dessa mesma orelha, uma diminuta tatuagem de uma borboleta. Impossível haver erro na identificação, e o fator surpresa diminuiria os riscos.
Os dias sucederam-se sem notícia e a ansiedade do velho Macedo cresceu. Havia desistido o vingador? Fora morto pelo assassino? Eram dúvidas que atormentavam o ancião a ponto de a gota voltar a incomodar e o semblante de doente terminal assustar os amigos. Dois meses, nenhuma notícia. Estava a ponto de despachar outro pistoleiro quando, inesperadamente, o vingador retornou.
Extasiado pela alegria, Jerônimo Macedo conferiu a prova inconteste da materialização da vingança: a orelha esquerda do assassino. Não coube em si de satisfação. Contrariando a habitual parcimônia nos gastos, foi pródigo com o pistoleiro e deu-lhe além do combinado em dinheiro. Em seguida, mandou-o desaparecer.
Podia enfim morrer em paz.
Sua vida era um vazio de sentimentos, ressalvados os momentos de excitada felicidade vividos após a consumação da vingança, mas a sua alma exultava tranqüilidade.
Embora preparado, a morte não viria de imediato para Jerônimo Macedo. Chegou no segundo aniversário da morte do filho, da única maneira que não desejava. Outra fatalidade ou a premeditação de um instinto sanguinário?
No final de um dia calorento, quase à hora de fechar sua loja de ferragens, quando sozinho conferia o caixa do dia, Jerônimo Macedo viu um homem surgir diante do balcão de madeira. Um sobretudo com lapela levantada – malgrado o calor – e um chapéu enterrado até as sobrancelhas escondiam suas feições. O velho encarou distintamente o desconhecido e perguntou:
— Em que lhe posso servir, cavalheiro?
O outro não respondeu imediatamente. Optou por tirar o chapéu e abaixar lentamente a lapela do sobretudo. Disse em seguida, sem qualquer inflexão na voz, após virar o lado esquerdo da cabeça na direção de Jerônimo Macedo:
— Quero minha orelha de volta!
Um disparo de revólver impediu que o velho expressasse sua estupefação em palavras ao assassino, mas suas feições disseram tudo.
jjLeandro
domingo, 8 de abril de 2007
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