sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Quando um telefonema estraga o dia


Corri, malhei como um jovem. Um jovem de 50 anos. Voltei para casa, banhei, avaliei o físico diante do espelho do quarto: nada mal. Enchi os pulmões de ar e contraí a musculatura. Senti a vida inchando por dentro e os músculos, duros como pedra, reterem o fluido vital.
Animei-me para mais um dia de trabalho. Antes de sair à rua, conferi as anotações para o frugal almoço que deixava todo dia para a minha funcionária doméstica sobre a bancada da cozinha: folhas variadas, cenoura e beterraba cruas raladas, um bife magro grelhado e caldo de feijão. Sem dúvida estava fazendo a coisa certa. Pensei nos anos por virem e lembrei-me do poetinha: “que seja infinito enquanto dure”.
Já havia entrado no carro quando o telefone tocou. Voltei.
—Alô?! Queria falar com o titular da conta.
—Ele falando...
—Senhor José, já pensou que pode morrer hoje?
—Mas que conversa é essa? Isso é trote?
—Nada disso, é a sua operadora de telefonia fixa oferecendo-lhe um plano que inclui seguro por morte e auxílio funeral. Não se esqueça que todo vivo é mortal.
Indignei-me.
— A senhora ia ter certeza disso se estivesse agora diante de mim.
Ela voltou à carga com a voz imperturbável das profissionais de telemarketing:
— Pense que na hora extrema sua família iria sorrir por não deixá-la desamparada: são R$ 22 mil de seguro.
— É pouco, não valho só isso.
Argumentou com a dinâmica da economia de mercado, querendo amarrar-me ao contrato:
— Sempre há reajustes, não se esqueça.
—Não quero, estou muito bem.
Ela não se entregava.
—Qual a sua faixa etária?
—Tenho 50 anos.
—Hummm. Senhor José, lamento informar-lhe que já está com os dois pés na faixa dos que têm grande risco de sofrer infarto ou AVC.
— O Samu é aqui perto, me socorre.
—Sabe que na teoria tudo é bonito. Na prática, essas ambulâncias vivem quebradas.
Voltei a perder as estribeiras ante a insistência dela.
—Moça, você me irrita. A minha pressão vai subir.
—Calma, senhor José. Não vá morrer antes de fecharmos o nosso contrato, por favor.
Bati o telefone na cara dela e saí dirigindo com toda cautela. Por via das dúvidas marquei médico para avaliar o coração e a cabeça.
Um telefonema conseguiu mesmo estragar o meu dia.


 jjLeandro

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

OS CELULARES DE DIOLINDA



Hoje encontrei o Crisóstomo, amigo meu. Aposentado, vira-e-mexe encontramo-nos nos Correios ou à porta de alguma agência bancária. Eu buscando livros no reembolso postal ou fazendo transferências bancárias para livrarias me mandarem mais livros. Ele correndo atrás da aposentadoria de engenheiro da extinta RFFSA.
Sempre uma boa conversa surge desses encontros fortuitos. São muitos minutos sentados num banco da pracinha diante da agência bancária, debaixo de uma umbrosa mungubeira enquanto o movimento da rua flui célere diante de nós. Com tempo disponível, está sempre atualizado com as notícias. Interessante que ao comentá-las busca sempre um vínculo com o seu cotidiano.
Soltou-me a última no encontro de hoje:
— O Brasil já tem mais celulares que gente, pode?
Encolhi os ombros antes de comentar.
— Pode sim, a economia está melhorando.
Pareceu não me dar ouvidos e continuou:
— São 194 milhões de celulares para um milhão a menos de população.
— Isso tudo, Crisóstomo? — questionei.
— Sim! Tem gente com mais de um aparelho, como lá em casa.
—Você tem dois?
Ele fez um gesto irritado com a mão, um claro protesto contra o amigo que o desconsiderava ao demonstrar não o conhecer bem.
— Eu não. A minha empregada.
— Ela tem dois?
—Sim. E o tempo inteiro está na cozinha com eles grudados nas orelhas.
—E dá conta do trabalho?
— Pior que sim — e justificou explicando que o que difere o ser humano das demais espécies de primatas é o fato de sucessivas experiências gerarem evolução. — Prende-os pressionando os ombros contra a cabeça. Fica assim um tempão, lavando louça, fazendo comida e conversando ora com uma, ora com outra amiga.
— E você nunca disse nada?
—Até já tentei, mas não surtiu efeito.
—E tentou o quê?
Ele demorou alguns segundos, mas desembuchou.
Na verdade reclamou mais atenção dela ao trabalho, num diálogo que tentou apimentar com ironia. O final foi mais ou menos assim:
— Diolinda, você tá aí com dois celulares grudados nas orelhas como se fossem brincos. Diga-me: nunca pensou em comprar um terceiro?
E ela, voltando-se para ele com o pescoço sumido entre os ombros e o rosto ausente de malícia:
—Pensar até que já pensei, seu Crisóstomo. Mas para que vou querer três se só tenho duas orelhas?


jjLeandro

Imagem: http://robertobertholdo.jornale.com.br

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

UM DIA DE FOME

Nunca imaginei que almoçar fora de casa em feriado pudesse ser complicado. Depois do feriado da Proclamação da República, das dificuldades em encontrar um restaurante aberto, sentei diante do lap top para redigir esse manual.
Amigo, se o feriado, qualquer que seja, cair numa segunda-feira — como aconteceu comigo — desista da ideia de fazer uma graça à mulher convidando-a a ressuscitar os bons tempos de namoro quando saíam procurando restaurantes mesmo em dias de trabalho. Lembra-se que os melhores e mais caros eram escolhidos para impressioná-la com a fineza de seu gosto e a sua boa condição econômica? Sei que já fez isso. Que atire o primeiro prato quem nunca fez.
Para complicar, a minha mulher havia acabado de chegar de uma viagem de trabalho. Uma semana longe de casa. Voltou na madrugada do feriado. Dormiu mal e para livrá-la de qualquer tormento doméstico logo num feriado, fiz o convite:
— Hoje vamos comer fora.
Os meninos foram os primeiros a se lançarem para dentro do carro:
— Obaaaa!
Ela meio desconfiada, exigiu:
— No melhor, porque já faz tempos que não saímos.
Que memória de elefante, tive que admitir em silêncio.
Engrolei a língua querendo escapar ao compromisso, mas fui obrigado a cuspir um ‘sim’. Ante seu olhar desconfiado, eu disse pela enésima vez como aquele feioso da propaganda de um carro popular: ‘você sabe que para mim só existe você’.
Com os meninos comendo-se feito bichos no banco traseiro, partimos em busca do restaurante top de linha. Era uma suntuosa construção entre gramados bem cuidados e árvores frondosas num bairro alto, de onde se via longe o centro da cidade. Ainda no caminho, pelo pouco movimento de veículos, desconfiei que não estivesse aberto. E não estava mesmo. Nem o segundo melhor, nem o terceiro. A mulher inquietava-se e as crianças também. Ela, com olhares homicidas dirigidos a mim que modificam o tempo verbal da frase propagandística e pareciam dizer ‘você sabe que para mim só existiu você’, declarou pressionando-me:
— Ontem, antes de pegar o avião na volta, não jantei.
Apressado, no retorno ao centro da cidade encontrei numa avenida de pista dupla uma fila de carros. Apostei que eram a salvação. Que fazia na rua ao meio-dia de um feriado na segunda-feira aquela gente em tantos carros senão procurando também um restaurante onde almoçar? Postei-me ao fim dela e seguimos. Alguns bairros depois os carros estacionaram numa praça. O restaurante estava lá. Ufa, finalmente! Mas peraí, o restaurante estava fechado. Mas, e os carros? Eram de um grupo de evangélicos que se dirigia para uma reunião no templo do outro lado da praça.
Putz! Era o fim da picada, ou melhor, o fim da fila. Mas havia uma última opção: o restaurante paga-quanto-pesa. Estava lá no letreiro, como pudera esquecer?: ‘Restaurante Porta Aberta’. E como reforço para os incrédulos: ‘Atendimento de segunda a domingo’. Diante de tantas tentativas baldadas, ainda que sem o glamour do top de linha, ele poderia ser a salvação de um dia de fome.
Os muitos carros nas proximidades do restaurante aliviaram-me a alma. Finalmente um deles estava aberto. Como só havia vaga longe da entrada, parei o carro distante e fomos a pé, animados. Decepção. O restaurante tinha as portas fechadas. Abaixo da tabuleta que anunciava o serviço sem interrupção estava assinalado em letras pequenas: ‘exceto em feriado na segunda-feira’. E a quantidade de carros? Era do velório na casa ao lado do restaurante.
Desistimos de comer fora. Restou como consolo a comida improvisada no fogão de casa.
Para adiantar o almoço, dividimos as tarefas por quatro.
Após vários insucessos para acender o fogão, praguejei com raiva:
— Droga! Acabou o gás.


jjLeandro 

domingo, 14 de novembro de 2010

Uma visita à UFT

Que sufoco não ser aluno, professor ou servidor da UFT (Universidade Federal do Tocantins) e visitar o campus de Araguaina. Digo isso porque ao menos eles convivem com as armadilhas existentes ali e ‘sabem desarmá-las’ por força de um exercício diário que a sobrevivência impõe-lhes. A coisa piora se a visita for à noite e a pessoa ‘estranha ao meio’. Obriguei-me a isso um dia desses. O resultado: quase fui parar em um pronto socorro com suspeita de perna fraturada. A coisa foi mais ou menos como passo a narrar.
Recebi convite de uma amiga, professora do curso de Letras, para visitar a exposição fotográfica de Emerson da Silva sobre a Roda de São Gonçalo, vertente do trabalho esplêndido do pesquisador Wolfgang Teske com os quilombolas da Lagoa da Pedra de Arraias, tuiteiro como eu, que conheceria ali pessoalmente. Um programa e tanto para quem milita na área cultural e sabe quão raras são oportunidades tais em nossa cidade.
Cometi o primeiro erro ainda em casa ao entrar no carro: era um veículo comum, desses de andar em cidade com ruas asfaltadas. A experiência demonstrou que o local exige um robusto off-road de tração nas quatro rodas. Como o pátio do estacionamento estivesse lotado, encontrei um portão lateral aberto e achei de bom alvitre ir metendo o carro por ali. Foi meu segundo erro. Eu não sabia que o calçamento com pequenos blocos de cimento só ia até pouco depois do portão e por isso não imaginava a arapuca que me esperava. Transpus o portão e imergi na escuridão do pátio: não pude ver o fim do calçamento. Avancei. De repente o carro pareceu cair num despenhadeiro. Leitores, desculpem-me a hipérbole. Mas quem tem a convicção de deslizar num tapete e em seguida sente-se tragado por um vácuo vai concordar comigo. Confuso, abri a porta e procurei o chão. Foi meu terceiro erro. Afundei mais ainda. Talvez não fosse vítima de um despenhadeiro. Quiçá estivesse sendo sugado por um buraco negro.  Hipérboles à parte, a língua portuguesa, coitada, ainda não inventou uma figura de linguagem capaz de expressar a situação. À falta de algo mais forte fiquemos com a hipérbole mesmo que transformada em eufemismo.  
Alguns alunos socorreram-me. E foi a minha salvação. Tiraram-me de dentro do buraco onde eu segurava a perna dolorida pelo pisão em falso. Outros voluntariosos levantaram a frente do carro e forçaram-no para trás. Foi novamente posto na horizontal.
Ainda atordoado, desculpei-me:
—Gente, acho que invadi o canteiro de obras e destruí a vala que vai receber as manilhas da galeria pluvial.
Um aluno galhofeiro deixou fruir sua verve:
— Ou você é um gozador ou está desinformado: você caiu nas voçorocas que nos vão engolir um dia por erro na construção do Campus e falta de pavimento no pátio.
Respirei aliviado por não ter causado prejuízo ao patrimônio público.
— Menos mal, pensei que era uma obra.
E ele tornou, zombeteiro:
—  Obra nada, é cagada mesmo.

jjLeandro
Fotos: Pátio interno da UFT (Araguaina)

sábado, 13 de novembro de 2010

O que não dizem as palavras, mas fala o sentimento

O que há
Entre o dizer
E o calar?
O que há?
O que há
Entre querer
E não poder?
O que há?
Não há palavra
Que caiba
Nesse vazio,
Que expresse
O que se sente
Entre o desejo
E a saciedade,
Que para o tempo
É um milésimo
E para nós
A eternidade.
O que há?
Só quem
Já passou
Por isso
É capaz de ler
Num fugaz olhar
O não dito
Nesse momento,
Não dito com palavras,
Mas escrito
Com sentimento.



 jjLeandro

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

AS LETRINHAS MIÚDAS



Se a sua relação com o Plano de Saúde está como a do torcedor com o time de futebol do coração rebaixado para a segundona ou ainda é difícil como a do político corrupto que se elegeu nas eleições passadas e tenta incutir ao TSE que o seu passado negro não conta para a Lei da Ficha Limpa porque é uma abstração do tempo,  a coisa tá pra lá de feia.
Mas pode ser pior ainda. Sim, sempre haverá alguém em pior condição que a sua. Mas não se deixe levar por esse lenitivo. O infortúnio alheio só mostra que você faz parte de uma desgraça maior, e isso é desesperador. Mas nesses casos, infelizmente, o comum é a desgraça alheia gerar resignação.
Para que isso não aconteça lhe contarei um caso surreal, difícil de acreditar e espero que a empatia o faça correr atrás do prejuízo.
Quando dona Maria completou 60 anos precisou negociar com o Plano de Saúde que pagava há vinte anos a mudança de faixa etária. Cumprira ao longo desse tempo fielmente com seu dever de associada: pagava regiamente as mensalidades embora os tempos já fossem republicanos. Além disso, gabava-se com as amigas nas tardes de tricô que quase nunca, ou nunca, não se lembrava exatamente, precisara usá-lo. Com isso acreditava ter acumulado vantagens, como as milhas da Aviação, para a hora que fosse indispensável qualquer negociação.
Com um sorriso foi ao Plano em busca da negociação. A moça, apertada num paletozinho padrão, apertou-se mais com o que teria que dizer à senhora ao consultar sua situação. Pensou na mãe, pensou na avó (não na bisavó, que esta tinha partido muito provavelmente antes da constituição do Plano). Quase foi às lágrimas. Num misto de esmorecimento e alívio de consciência empurrou dona Maria para o gerente.
— Deixa comigo que esses casos eu tiro de letra — disse ele com absoluta tranquilidade.
Ou o homem tinha nervos de gelo ou a experiência (ah! a experiência) tinha temperado seus nervos com aço na lida com tais melindres.
Pois de cara não é que foi solícito com dona Maria, ofereceu água, cafezinho, um lugar para sentar (não se sabe se o choque da notícia que ele tinha para dar ia levá-la ao chão — isso cá com os nossos botões que a experiência o habilitara a dar só os passos necessários para não perder tempo. E ali tempo é dinheiro).
Simulou uma consulta. Demorou um tempo enrolando dona Maria. Tempo exato em que ela vasculhou o ambiente com os cansados olhos míopes, comprovando pela beleza da decoração e dos móveis a pujança da empresa. “São favas contadas”, pensou  aliviada.
Abandonou suas digressões para ouvir o gerente que agora falava:
— Dona Maria não há qualquer reajuste na mensalidade por mudança de faixa etária no seu caso...
— Eu sabia — sorriu ela, interrompendo o gerente (bem sabido que não sorriu por último, para que o ditado não fosse desmoralizado).
— Deixe eu concluir, por favor. Não há reajuste por um simples motivo: o seu plano foi extinto aos sessenta anos.
— Mas como? Assim sem nenhum aviso, sem nenhuma carta? — a coitadinha não sabia o que dizer.
— Estava no contrato, dona Maria.
— No contrato?!
— Sim, ali nas letrinhas miúdas. A senhora não leu?
A sua resposta foi quase uma confissão de culpa:
— Eu tenho as vistas fracas.
Ele por sua vez foi lacônico:
— Devia ter aproveitado os benefícios do Plano para ir ao oculista.


  

jjLeandro

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

É A TAL GLOBALIZAÇÃO

Imagem: http://www.forumptd.com/lofiversion/index.php?t43946.html






Andando na rua, aproximei-me de um desses carrinhos que vendem a espiga de milho assado a um real. Sou fanático por milho, assado, cozido, transformado em pamonha, curau ou bolinhos fritos. Teve milho, encaro até uma polenta. Os vendedores de milho são mais comuns na época da chuva. Escasseiam quando ela vai embora. E como a chuva voltou, eles aos poucos reaparecem nas esquinas da cidade. Pois bem, fiz-me diante de um deles num dia desses.
Estava alegre o vendedor, pôde enfim sair do ócio e curtir o dinheiro miúdo que a economia informal põe em seu bolso todo dia. ‘Tudo é trabalho, né, doutor?’, alegou. Concordei, mesmo vendo que a resignação é o traço que a vida mais realçava em sua fala diante de tão pouco ganho e de tantos concorrentes. ‘Em seu lugar eu já teria soçobrado’, elogiei-o enquanto atacava o milho a dentadas. Ele torceu a boca numa munganga, enfiou os dedos pelos cabelos crespos e não teve cerimônia quando disse:  
— Não sei o que é isso que o senhor disse, não. Mas pode ter certeza que a gente é igual erva daninha: desaparece no estio e volta na chuva.
Achei lapidar a sua comparação. A sabedoria popular plenamente demonstrada. Sorri. Ele afastou-se um pouco para atender mais um que chegava. Quando voltou, eu já tinha devorado o milho. Meti a mão no bolso, puxei a carteira e perguntei o preço. Apenas precaução pelos mais de três meses sem ver milho assado na rua. Mas ele surpreendeu-me:
— Um e cinquenta, doutor.
Tive que tornar a moeda à bolsa e entregar-lhe uma nota de dois reais. Junto com ela, a observação:
— Encareceu o milho, hein?
A explicação que ele me deu, surpreendeu-me.
— Pois é, o senhor sabe, a quebra da safra de trigo na Rússia e em outros países europeus empurrou pra cima o preço do milho na Bolsa de Chicago e favoreceu nossas exportações.
— Em suma: a lei da oferta e da procura é a culpada... — atalhei.
— Ainda bem que o senhor entende que a culpa pelo reajuste não é minha.
— Claro...
E ele encerrou o diálogo, depositando uma moedinha de cinquenta centavos em minha mão:
— É a tal globalização, doutor!

jjLeandro