segunda-feira, 26 de abril de 2010

A MORTE DA REVOLUÇÃO


Quando a Revolução chegou, lembro-me bem, morríamos como moscas borrifadas por inseticida sob a Ditadura. E ela foi apoiada com força como um remédio milagroso surgido para pôr termo à cólera que meus pais diziam ter sido o maior flagelo do país na época de minha infância. Com a Revolução, o povo deixou de temer a morte; Como a morte era certa de qualquer maneira, por que não na luta? E então a mortandade foi ainda maior com o recrudescimento das hostilidades. Mas então estávamos incrivelmente felizes. Lembro-me do rastilho vibrante que correu a cidade de boca em boca, gerando ainda mais determinação na luta: os mortos não têm mais aquela cara de dor torturante, não têm mais o semblante desolado dos que não veem salvação. Era assim que diziam as pessoas alvoroçadas em todas as esquinas, no porto, no feio e pobre casario dos arrabaldes, nos salões luminosos dos hotéis de luxo. Lutavam e cantavam felizes. Fora porque a vida ganhava sentido, o futuro voltava a depender exclusivamente de nossa ação. A Revolução gestara tão poderoso milagre que mudara até a face da morte, pois os que morriam tinham-na descansada, um leve sorriso distendendo seus músculos.

Foi um tempo de apertos que pensávamos superado definitivamente, pois após a guerra as cidades reconstruídas ganharam vitalidade, as indústrias e o campo voltaram a produzir, as casas voltaram a encher-se de vida e música. As crianças substituíram o matraquear das armas automáticas pela alacridade de suas algazarras domingueiras. As pessoas unidas desejavam lembrar o passado apenas o suficiente para não esquecer a memória dos heróis.

Por algum tempo houve consenso e de mãos dadas buscamos a felicidade. Ou porque nada é eterno, ou a perfeição humana é apenas uma quimera, a desventura voltou a rondar o país como ave de mau agouro. Os anos foram dilapidando os fortes alicerces revolucionários como a velhice desfigura as pessoas. Tão lentamente que a maioria do povo não se apercebeu das mudanças. E continuou mourejando de sol a sol como sempre fez. Quando a palavra Ditadura foi ressuscitada, após quinze anos proscrita, nem eu quis aceitar. Aquele homem levado pela milícia, arrastando os sapatos na imperfeição do calçamento de pedra, era apenas um contrarrevolucionário. Assim também entenderam as pessoas que viraram os rostos na rua a procura dos gritos e da algazarra que denunciavam a cena. Nunca esqueci aquilo. Não só por evocar o passado, mas pelo fato de se tornar corriqueiro daí em diante. Tanto mal me fez que em casa passei a desconfiar de mim mesmo e sei que muitas outras pessoas agiram igualmente. Outras ainda fizeram pior: delataram vizinhos e amigos por insignificâncias. Olhava-me no espelho do banheiro à procura do menor sinal que denunciasse ideias hostis ao governo. O que via era apenas o meu rosto murchando, sulcando-se apressadamente de rugas, ganhando contornos que se pareciam com os de meu pai sob a Ditadura na década de 1950.

Fremi de medo. Recuávamos no tempo? E se recuávamos, por que meu rosto não rejuvenescia?

Entendi que emergia da alma nacional uma insatisfação contra algo que não era novo, já experimentado e recusado. Nas ruas, a milícia continuava o seu trabalho de arrastar homens para as masmorras ou jogá-los dentro de carros numa viagem sem itinerário. As ausências nos lares não tinham explicação. O choro dos filhos, das mulheres, das mães era um termômetro do retrocesso.

O nosso Messias, o grande líder, passou a ser desrespeitado na rua. Não que ele andasse por aí, a cara à mostra mesmo com guarda-costas, sendo desacatado, xingado, coberto de impropérios e tomates podres pelos descontentes. Nada disso. No primeiro protesto ele recebeu furtivamente bigodes nos out-doors que celebravam as conquistas e o aniversário da Revolução, à semelhança do Ditador que ele depusera, e o mesmo epíteto em grafite negro: Ditador! Vi isso na ida ao trabalho bem cedo no grande parque colonial. Diante do out-door pregado ao gradil, o povo aglomerava-se. Conferia incrédulo se aquilo era mesmo o velho ou o novo ditador tamanho a semelhança; se aquilo era real ou sonho. Duvidava, como eu mesmo duvidei naquele momento, se a Revolução acontecera ou se tudo não passara de um delírio da soalheira tropical. Mas num piscar de olhos, como se de olhos bem abertos estivesse a vigiar todos os nossos movimentos, a polícia chegou batendo em todo mundo e acabando o charivari. A solução inesperada para fazer sumir imediatamente dali a imagem vilipendiada do Messias não foi outra senão destruí-la. Ainda que de longe, quando o out-door foi ao chão, o povo aplaudiu calorosamente como se depusesse o novo Ditador.

Foi por essa época que tirei definitivamente a venda dos olhos. E tudo pareceu tão diferente. Com tristeza pude ver que a cara do povo não guardava mais qualquer traço dos dias revolucionários. Era uma cara abatida, sombria, olhos fundos de fome e miséria; rugas profundas marcavam os rostos cansados como se o látego do Ditador os ferisse diariamente por qualquer contestação. Até o país cheirava a morte e abandono. Os prédios, entregues à desídia da Revolução, caíam aos pedaços. As cornijas de portas e janelas despregavam-se em blocos. As pinturas antigas se pareciam com as da época do primeiro Ditador. Os carros eram os mesmos de meio século atrás, mais velhos pelo uso e a falta de manutenção. Andar naquelas ruas, entrar naqueles carros, era recuar no tempo. Como pudera por tanto tempo não ver o que me alarmava os olhos agora? Como pudera andar pelas ruas, conversar no trabalho e nos parques da cidade aos domingos alheio à realidade?

Será que alguma vez quisera romper os liames do pesadelo, tocar a pessoa ao lado para ouvir a sua opinião? Será que o tétrico diálogo foi mais ou menos assim após minha admoestação:

— Não vê que tudo isso é um sonho de morto?

— E somos mortos? — perguntei.

— Sim, morremos no combate ao desembarque americano da Baía, não percebeu ainda?

— Não pode ser, comemorei aniversários da vitória na Praça da Revolução.

— Estivemos lá sim, ou melhor, os nossos fantasmas.

— E não podemos fazer nada? — aniquilei-me.

Desolado, o outro sacudiu a cabeça negativamente.

Ainda insatisfeito, voltei ao assunto, querendo maiores detalhes:

— E o Ditador, que ninguém vê há tempos. O povo só o vê em retratos pela cidade, tão novo como nos tempos revolucionários, que logo são cobertos de porcarias e palavras de ordem. Será que só nós, o povo, envelhecemos?

— Igual a nós, também ele já morreu.

— Morreu?

— Sim, está morto. E faz tempo. E levou consigo a Revolução.

— E como se resolve isso? — excitei-me.

Ele percebeu meu estado e me repreendeu.

— Calma, os mortos não se podem excitar. Temos que ser pacientes e esperar. A eternidade é a medida de nossa paciência. Somos para o todo e sempre testemunhas dos acontecimentos. Só isso!

Após ver que me acalmara, ele voltou ao assunto:

— O caso do Ditador é mais simples do que parece. Quando o povo perceber que ele não mais aparece em locais públicos, que o Palácio é inacessível, que só os porta-vozes falam por ele, porque ele morreu, vai providenciar rápido o seu enterro e o seu esquecimento.



 
jjLeandro

sábado, 24 de abril de 2010

DIA MUNDIAL DO LIVRO

                                            Estudante fazendo a leitura de A MORTE NO BORDADO

Eu, Paula Zerbini (Diretora do CCB) e Zequinha Decolores

Com a professora de Português e alunos que fizeram trabalho sobre a minha obra

A galera na biblioteca

Pausa para um clique

Conversando com Joyce. Ela lê 12 livos por ano (muito acima da média nacional)

Entrevista

Ontem, 23, foi comemorado o Dia Mundial do Livro.

O CENTRO DE ENSINO MÉDIO CASTELO BRANCO - CCB - convidou membros da Academia de Letras de Araguaina e Norte Tocantinense para uma conversa com os alunos sobre este antigo meio de comunicação de massa que tem ajudado o homem a transmitir às gerações futuras sua história e sua cultura.


Estivemos lá, na biblioteca do CCB, eu, jjLeandro, e Zequinha Decolores. Foi um papo agradável para uma garotada atenciosa.

Houve até entrevista para a afiliada da Rede Globo local - Tv Anhanguera.

jjLeandro

sexta-feira, 16 de abril de 2010

VINTE E QUATRO HORAS PARA A MORTE - UM EPISÓDIO NA DITADURA BRASILEIRA

Imagem: Montagem com fotos do período da Ditadura brasileira

E há hora para morrer? Bem, os verdugos podem marcá-la, mas à revelia de Pedro Poliche. Pode ser também que os suicidas escolham a hora com rigor, mas pensar nisso é ir às raias do macabro. Ninguém, que ele soubesse, havia conversado com um suicida sobre isso. Nem qualquer deles havia exposto escrupulosamente e com antecipação, detalhes e horário, seu plano de sumir deste mundo. Se assim fosse, o previsível é que tivesse seu propósito abortado por alguma providência que o impedisse de atentar contra si mesmo. Seria a suprema desmoralização. Não, um suicida não confessa a decisão extrema. Simplesmente executa-a. Por isso o suicídio é sempre uma surpresa para os familiares ávidos por um bilhete, uma carta, escondido nalgum móvel, segredando as razões da ação desesperada.




Mas Poliche queria fugir da morte e não era suicida. Estava vivíssimo e com muita vontade de viver. Não havia em sua personalidade qualquer traço depressivo, surto psicótico ou insegurança que gerasse ansiedade e pudesse diagnosticá-lo como potencial suicida. E mais: não tinha raiva de si mesmo e muito menos estava de mal com o mundo. Poliche era jovem rico e bonito, universitário, e em perfeita sintonia com as aptidões e os desejos de um rapaz de sua idade: garotas, sexo, festas e bebidas. Por estar assim bem resolvido com a vida, aos seus olhos o sol que nascia não só fazia o mundo ganhar cores e vibração conforme avançavam as horas. Tocava de maneira especial o seu íntimo, exultando de felicidade como se fosse transbordar. Beatífico momento para ele esse do sol nascendo ou se pondo.


Mas não nas circunstâncias do momento.


Universitário politizado, dirigente estudantil, quadro do Partido Comunista, Pedro Poliche andava metido em conspirações contra a Ditadura agonizante. Era final de 1982, ela dava os últimos suspiros, não mais matava — a menos que de maneira acidental e não mais “acidental” —, mas ainda mordia. Naquele momento Pedro Poliche tinha receio disso: uma mordida desproporcional que causasse um acidente. Estava preso o rapaz na Polícia Federal havia algumas horas. Incomunicável desde o final da tarde. A passeata dos estudantes fora reprimida ao sair da praça da universidade. Uma ação temerária forçar a barra, concluíra na incomunicabilidade, como fazem os guerreiros solitários após a derrota. Ainda se agitavam em sua mente as principais cenas do distúrbio recente: a praça cercada de PMs, cachorros rosnando sobre a multidão contidos pelas trelas até a hora certa de morder. Agentes da PF infiltrados, disfarçados, marcando os líderes com os disparos rápidos de suas máquinas fotográficas. Um coro forte de vozes após o último discurso e a decisão contagiante de romper o cerco: vamos à praça do Palácio! A turba arrancou como um só corpo, causando nos milicos, diante de tanta determinação e coragem, segundos de vacilo. A coragem dos estudantes recrudesceu. O passo atrás dos PMs fê-los invadir com mais determinação a avenida de pista dupla. Um ímpeto de represa rompida, cuja grande massa líquida se espraia pelo vale sem obstáculo capaz de conter sua fúria. Mas os PMS, treinados para distúrbios de grande magnitude, reagiram rápido, lançaram bombas de gás na multidão, deixaram os cães livres para morder. Gritaria geral, atropelos, cassetetes abrindo cabeças, escudos da tropa de choque encurralando moças e rapazes indistintamente. Os milicos multiplicaram-se ou os manifestantes escapuliram pelos becos e esquinas para fugir à prisão? Ficaram poucos, catados à unha pelos PMs. Entre eles, Pedro Poliche. Manietado pelas algemas, não resistiu à fúria da polícia. Agarrado pelos cabelos, pernas e braços, foi jogado no camburão. Caiu flácido lá dentro, com som de quarto de gado jogado no carro para transporte até o açougue. Era impossível saber o que era hematoma do tombo ou das porradas.




Pouco interessava isso a Poliche no momento. Rememorava aflito cada quadro do seu filme particular desde a chegada à delegacia da PF. Queria pistas que indicassem que rumos o seu caso tomaria.


A primeira acusação:


—É comunista!


Fixou na retina a imagem do homem suado, olhos em transe, de cascavel. Rosto gordo e untuoso. Fumava um cigarro atrás do outro. Agitava um dossiê e extraíra dele um punhado de fotos suas discursando em várias manifestações. Tinham ali mais fotos suas que ele próprio em casa. Se a ocasião fosse outra, sorriria. Concentrou-se tanto na figura patética do delegado que o som da voz dele sumiu. Agitava-se a sua frente, com os papéis e as fotografias à mão, em mímica de quem espana poeira de móveis. Os gestos agressivos dilatavam a cena, devoravam os sons.




O delegado se foi, vieram os agentes. Conduziram-no a uma sala pequena de paredes lisas, nenhum móvel, uma clarabóia na parede filtrava uma luz avarenta para o interior. O teto alto prendia uma lâmpada. O som dos pardais era audível. Havia algum pátio interno com árvores no complexo maciço da delegacia para serem ouvidos assim. E o canto das aves empurrou Poliche para a intangível infância com pardais e figueiras na casa paterna, onde se sentia seguro, sem milicos nem PFs. Ligeirinho voltou à realidade. A porta grossa do pequeno cômodo era de metal com um quadrado com barras maciças. Antes que tirasse suas próprias conclusões, um dos agentes disse sarcástico:


— Sua gaiola.


Ficou ali horas lutando contra medos e fantasmas. Não tinha relógio, tiraram-no à entrada. Soube que a noite chegara pela penumbra invadindo lentamente o espaço restrito. Em pouco tempo começou a desaparecer. Primeiro seus pés sumiram, depois as canelas, os joelhos. Passados alguns minutos só via as mãos se as pusesse diante dos olhos. Ficou cego. Piscava os olhos freneticamente, mas tudo era escuridão. Tivessem abertos ou fechados: escuridão. A certeza de ainda estar vivo trazia-a o distante chiar de rodas de carros no asfalto. Os estudantes iam à universidade.




Voltou ao cubículo escuro. Refletiu sobre sua condição. Para sua sorte, diziam que a Ditadura não tinha mais tanta ferocidade. Estava desmoralizada e perdia força. A despeito do quanto diziam era ainda uma Ditadura. Os generais no poder ainda ostentavam orgulhosos suas fardas com galões e medalhas de batalhas imaginárias. Conservavam a mesma cara dura talhada em mármore, expressões enérgicas, tão mais enérgicas quanto mais o poder esvaía de suas mãos. Pareciam-se muito ao General da Banda, caricatura da peça infantil representada no seu colégio, que comprava furtivamente condecorações em brechós e bricabraques para impressionar nos desfiles da semana da Pátria. Eram ridículos como sempre o foram, sorria sem muita vontade, mas ainda podiam ostentar força. Isto o preocupava. Assaltou-o uma ideia a princípio absurda, mas que o isolamento foi dando contornos reais: iriam executá-lo secretamente? Quantos foram vitimados assim? Entraram num órgão de segurança da Ditadura e evaporaram. Viraram triste estatística nos róis dos grupos de defesa dos perseguidos políticos. Lembrava que havia no Centro Acadêmico uma lista dos mártires dos tempos de chumbo num estudo cuja pequena biografia se interrompia no momento da prisão e do consequente sumiço. Procurou rememorar nomes presentes lá, querendo as datas das quedas, para a sua própria segurança, distantes do dia de sua prisão. Buscava um alento que comprovasse que a Ditadura agora só mordia, e cada vez menos. Eles foram aparecendo em sua mente: Virgílio Gomes, codinome Jonas, em 1969; o jornalista Vladimir Herzog, em 1975; o operário Manoel Fiel Filho, em 1976; os ítalo-argentinos Horacio Domingo Campiglia e Lorenzo Ismael Viñas, militantes do grupo Motoneros, em 1980. Entrou em pânico, cortou imediato o fio do pensamento. Sumia a coragem de recordar como se isso o eximisse de riscos, pois as datas se aproximavam perigosamente do dia de sua prisão. Quis entreter-se com sons que viessem do pátio para afastar as recordações aziagas. Buscou-os desesperadamente. Mas os pardais dormiam, os homens, sorrateiros, armavam ciladas em surdina, a cidade acusava o descanso noturno. O silêncio era opressivo, sentia-o penetrar em seu cérebro com a mesma intensidade dos gritos do delegado federal quando procurava intimidá-lo com o dossiê. Não podia opor resistência.


CONTINUAÇÃO EM PRÓXIMAS POSTAGENS
 
jjLeandro

segunda-feira, 12 de abril de 2010

MORRO BRASIL


Foto: Morro do Bumba - http://imgs.uai.com.br/arquivos/app/noticia173/2010/04/09/154898/20100409085026789138e.jpg

Bumba!
Bomba!
Confuso
Léxico.
Deixou tudo
Fora do fuso.
Bumba meu boi
É brincadeira,
É tradição.
Bumba se foi
É tragédia,
É também tradição.
No Brasil é assim:
Um morro nunca é pouco.
Bumba se foi,
Outros virão
Porque há Prazeres nisso.

jjLeandro













jjLeandro

sábado, 3 de abril de 2010

SINGULAR E PLURAL

.


Singular é o meu amor
Por ti pelo encanto,
Mas plural pela força
Por ser tanto.






Se retribuis, é plural
Por nós dois;
Se foges, é singular,
Estou só, pois.






Quando amamos
Somos dois e só um,
Singular e plural,
Incomum.

 
jjLeandro

O ENGENHOSO HUMANO


Por tão
Largo caminho

Passam o homem
E o cachorrinho.

Por estreita
Estrada
Passam o homem
E a boiada.


Onde cabe o homem
É tudo ou nada
O que é estreito
Ele alarga.
O que é largo
Se lhe apraz,
Ele ajeita,
Vai diminuindo
E estreita.


Com treta no mundo
É como ele urde
Ou desaparece,
Ou surge.



jjLeandro