terça-feira, 27 de fevereiro de 2007

OUTRA AVENTURA DE PIERRE DESSAULT


Foto: Sebastião Marinho - México 1970 - (detalhe)



PENTALOUCO

A loucura que tomou conta dos brasileiros na conquista do pentacampeonato parece não ter parâmetro em nenhum momento de nossa história nem na história de outros povos. Valho-me de uma crônica de viagem para tentar explicar a euforia da qual também eu fui tomado com a vitória da seleção de futebol em gramados do Oriente, assegurando o quinto título mundial ao Brasil.
A crônica que vou transcrever do livro “Um franco nos trópicos” de Pierre Dessault, tão obscuro quanto o livro e a editora de Toulon, havia quase quinze
anos, jazia entre os livros de minha biblioteca desde que o adquiri de um sebo em uma de minhas tantas viagens, e expressa a estupefação de um francês (nenhuma coincidência com 1998 — ele foi publicado em 1972) com o nosso fanatismo pelo futebol. Está carregada das fortes cores de um pastiche que procura imitar a façanha dos compatriotas Debret e Rugendas e do alemão Humboldt. Dessault começa assim: “Nunca vi tanto fanatismo em um povo. Talvez um paralelo para melhor entendimento — mas ainda acho pouco — possa ser feito com a paixão dos espartanos pela guerra e dos americanos por hambúrguer e coca cola.
O Brasil vivia o clima de mais uma Copa quando por lá estive, as ruas coloriam-se de verde-amarelo, as pessoas nas ruas não comentavam outro assunto e deixavam-nas vazias em dias de jogo. Falar mal da seleção era correr risco de linchamento — ainda maior sendo estrangeiro. O fanatismo criou no povo hábitos peculiares: ele consegue não trabalhar em dias de jogo e feriar após as vitórias; aliás, após as vitórias as ruas e praças entupiam-se de um povo alegre, festivo, cheio de mesuras e concessões, ansioso apenas de ver a supremacia de seu futebol assinalada. Festejavam loucamente como Napoleão festejava seus triunfos militares; mas os feitos do Imperador eram mais significativos.
Entediado com aquelas cenas que não me entusiasmavam (prefiro os marciais desfiles pelo Dia da Vitória sob o Arco do Triunfo), resolvi ir a uma igreja para fugir a tanta atribulação.
Era um dia nervoso. Senti isso na recepção do hotel no Rio de Janeiro: os recepcionistas pareciam não entender o que os hóspedes — quase todos estrangeiros — diziam. E não era pela barreira intransponível do idioma, ouviam atentamente o que dizia o rádio. O Brasil disputaria dali a instantes mais uma final de Copa. A aflição e a expectativa antecediam no semblante dos brasileiros a alegria consagradora das vitórias. À saída do hotel demorei a encontrar um táxi, e quando o encontrei logo soube por que: o motorista era português. Os últimos carros dobravam céleres as esquinas. Ninguém mais era visto nas ruas. A cidade estava deserta. As bandeiras brincavam com o vento nas marquises dos prédios e janelas dos apartamentos. Ainda antes de conseguir um táxi os fogos de artifício estouraram várias vezes. Era bom sinal para os brasileiros: a seleção estava vencendo.
Consegui um carro. Por alguns minutos ouvi apenas o chiado dos pneus do táxi sobre o asfalto e o cantarolar monótono de um fado com o qual o motorista tentava quebrar o silêncio. Desci na igreja da Candelária. A beleza da igreja não me impressionou tanto quanto vê-la quase vazia na hora da missa. Umas poucas velhinhas, duas ou três jovens senhoras com crianças e três homens compunham a assistência quando cheguei. Ninguém entrou depois. O padre rezava a missa mas — absurdo! — tinha sobre o mantel um rádio ligado no jogo. O nervosismo era grande em todos: o padre italiano de vasta calva suava abundante e tropeçava no péssimo português seguidamente. Os fiéis pareciam não ligar ao que ele dizia: estava claro que ouviam a frenética voz do locutor. E o locutor invadia a nave com sua voz mais potente que todas as trombetas de Jericó: ‘Torcida brasileira, o jogo está próximo do fim...espetacular jogada de Clodoaldo, ele lança Pelé pelo miolo, o rei livra-se de um marcador e rola a bola em diagonal para a penetração de Carlos Alberto....o capitão dispara uma bomba: é gooooo...’
O ato seguinte foi inédito para mim. O padre não deixou o locutor terminar o grito de gol e meteu a mão no rádio com muita raiva, derrubando-o de sobre o altar. Ao mesmo tempo, como impulsionados por uma única e potente mola, as velhinhas, as senhoras com as crianças e os três velhos levantaram-se e correram para a rua. Gritavam em uníssono pela nave afora: é tri, é tri, é tri.
Os fogos de artifício espocaram pela cidade como uma grande barragem de fogo de artilharia. O Brasil selava a vitória contra a Itália no México. Eu também deixei a igreja depois de presenciar o padre seguir silencioso e cabisbaixo para a sacristia. Não havia mais razão para continuar a missa. Sob o altar o rádio zoava ininteligível. Fui direto para o aeroporto. Era demais para mim.”
E essa foi apenas a comemoração do tricampeonato, imagine se esse francês presenciasse a nossa comemoração do penta. Pentalouqueceria.






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AVISO AOS AMIGOS





A partir de 28 de fevereiro estarei viajando até 10 de março. Dias em que o blog ficará sem atualização, mas espero contar sempre com a presença dos amigos.





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sexta-feira, 23 de fevereiro de 2007

PARA CONHECER MAIS ARAGUAÍNA


A cidade vista à noite a partir do Cristo (Fotos Ulisses Holanda)


Panorâmica de uma parte da cidade, tendo ao fundo o Lago Azul e em destaque a marginal Neblina com a pista onde me exercito diariamente.



Nascer do sol no Lago Azul.
Às margens deste lago há balneários para recreação.




Cachoeirinha Véu de Noiva, balneário com infra-estrutura para turistas nas proximidades da cidade.
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quinta-feira, 22 de fevereiro de 2007

PARA QUE TODOS CONHEÇAM O MEU RINCÃO


Araguaína sob ameaça de temporal - 22 de fevereiro 17h05m


Pista onde pratico cooper diariamente - 22/02/07 - 17h05m



A BELA ARAGUAÍNA

Araguaína é uma cidade de aproximadamente 150 mil habitantes (Palmas, a capital, tem cerca de 180 mil), mas economicamente é a mais importante. A tal ponto a pecuária é a mola propulsora de seu desenvolvimento que é chamada de Capital do Boi Gordo. O forte aqui é a criação de nerole para corte. Na cidade e na região são mais de meia dúzia de frigoríficos que abastecem os mercados do Nordeste, Centro-Oeste e Sudeste do Brasil. Será em breve beneficiada com a passagem da controversa e interminável ferrovia Norte — Sul, que fará a ligação do Pará a Senador Canedo em Goiás. Por esse eixo deverão ser transportadas milhares de toneladas da produção agro-industrial da região (é o projeto!).
A cidade situa-se na região do Bico do Papagaio(420 km de Palmas e 1150 km de Goiânia), nacionalmente conhecida em décadas passadas pelos conflitos fundiários e assassinatos de religiosos, sindicalistas e posseiros. No entanto, isso hoje é já página virada. E a região, de extrema beleza, vem reconstruindo a sua reputação em cima disso (breve abordarei esse tema). A sua principal ligação ao Centro-Sul do país é a Br 153, que vai de Belém ao Rio Grande do Sul. Araguaína é um lugar que tem seu pico de visita turística no meio do ano. Não por ter belíssimas praias fluviais, que elas distam entre 60 e 100 km, para o Araguaia e Tocantins, mas por ser um ponto de apoio fundamental para quem procura usufruir dessas delícias. E tudo servido por bom asfalto e infra-estrutura adequada.
A foto acima é de hoje, 22 de fevereiro, quando o poeta aqui se preparava para mais um dia de corrida amadora na avenida Marginal Neblina, para onde convergem os atletas no final do dia. É um local agradável, com pracinhas para atividades físicas e cerca de 2,5 km de pista de cooper na marginal do córrego, nos dois sentidos. É um ponto privilegiado no centro da cidade que diariamente recebe a visita de mais de 500 atletas.
O tempo fechou na hora dessa foto, aqui chove bastante de setembro a maio, algumas vezes até junho, e nos meses de novembro a março as chuvas são intensas. O carnaval foi todo debaixo d’água. Por assim dizer, aquático. E hoje quando me preparava para meus exercícios diários armou a maior chuva e corri em casa(moro a 50 m da marginal), peguei a máquina fotográfica e pensei “os amigos precisam ver isso”. E aí está!
Depois voltamos ao assunto.


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quarta-feira, 21 de fevereiro de 2007

O AMOR GEOMÉTRICO


Imagem: jjLeandro

O AMOR GEOMÉTRICO


Está claro ao mundo que o amor é um tantinho razão e muita emoção. E a maior prova disto é o dito: “o coração tem razões que a própria razão desconhece”. Sempre desprezei frases feitas pelo muito que têm de repetição e o pouco de reflexão. Nada original no que disse até o momento, mas o que eu disse se encaixa bem numa parte da matemática: a porcentagem.
O amor também é assim: matemático, ou melhor, geométrico! Fiz a descoberta ao ouvir por muito tempo o relato de um amigo sobre os seus casos amorosos. E as variantes que iam surgindo ele as enumerava com figuras geométricas. Um dia enrolou-se num problema sem solução. Ou numa figura que, por ser diferente, constituiu-se uma armadilha.
No início era tudo lindo. Casado há pouco era amor em linha reta, dois corações como dois pontos que se unem. E entre dois pontos a representação do menor caminho é a reta. E quando surge um terceiro ponto? O amor passa a ser visto de um outro ângulo ou ter um ângulo adicional. Aconteceu com ele, que ninguém é perfeito. Desenhava-se o triângulo amoroso após dois anos de um matrimônio perfeito. Como no triângulo o perímetro é determinado pela soma da medida dos seus lados, entre Marcos, Juliana, a esposa, e Carmén, a amante, a intensidade do romance determinava-se pela soma da medida de suas paixões. Houve no início, claro, como em todos os casos, gradações: Marcos tinha ainda um grande amor pela esposa. A adição de Carmén subtraiu um pouco desse amor. Numa comparação geométrica formavam um triângulo amoroso isósceles: o amor de Marcos e Juliana era igual, restava a Carmén a menor parcela. Mas ela com a ambição de toda amante soube alterar essa proporção, adicionando mais para si. Popularmente dizendo puxou pouco a pouco brasa para a sua sardinha. Foi quando o triângulo ganhou feições escalenas: as atenções para Juliana já não eram tantas, a maior parte cabia a Carmén; a relação com a esposa esfriara. Mas ela o pressionava, sentindo como toda mulher o abandono. Marcos recuou para não sair no prejuízo e sofrer um escândalo: e não houve como não ser paritário: o caso tornou-se eqüilátero. O tempo ajudou nesta conformação.
Juliana sentiu as mudanças no comportamento de Marcos e não mais se queixou. Bastava-se com as atenções recebidas, que não eram ideais, mas já era madura o suficiente para saber que o ideal é uma projeção ou especulação; de mais a mais culpava o tempo de casamento pela brandura dos afagos. Achara um bode expiatório de conformidade com a situação.
Com tudo sob controle, Marcos tentou mudar a feição geométrica do amor. Cansara do triângulo amoroso. Considerava-se afortunado e moderno, mas na hora do amor preferiu o quadrado. Adicionou Maria, a sua nova secretária, no paralelogramo. Tinha já tarimba para ampliar sua área de abrangência, reduzindo o perímetro dos riscos. Coisas de quadrado. Ora se apegava mais a uma, ora a outra, quando então o quadrado se tornava um retângulo pela proximidade de um de seus ângulos e o afastamento dos outros dois. Mas trazia tudo matematicamente medido.
Mas tão expert se achava o Marcos que não tinha mais dificuldades em colecionar amantes e figuras geométricas. E também não teve em fazer uma vez mais se justificar o dito: “o costume do cachimbo é que entorta a boca”. Quando o encontrava em um bar, entre um gole e outro de cerveja, era habitual a pergunta: e agora qual é a figura? Ele respondia prontamente. Com um ar pretensioso que me causava inveja(meu ângulo era um só, e sempre obtuso!) respondeu-me à última: estou agora no pentágono. E não ficou nisso. De outra feita estava eu e um amigo, Anacleto, bebendo à vitória do time de futebol do coração quando ele chegou. Tínhamos em comum a mesma paixão pelo futebol, mas o Anacleto não sabia dessa história de geometrias. Eu perguntei: E aí, qual a figura? Ele riu e comentou, sugando o cigarro com grande força: É já um hexágono! E expeliu olimpicamente a fumaça. Depois que ele saiu, o Anacleto, intrigado com o nosso código, deu vazão a sua curiosidade: Que história é essa?! Eu disse apenas deixa pra lá, você não vai entender mesmo.
Naquele dia saí de lá convicto que em breve ouviria dele que montara um harém. A figura seria então um pentadacágono.
O telefone tocou em minha mesa meses depois. E era ele mesmo, o Marcos. Fazia tempos que não o encontrava. Com uma voz angustiada chamava-me do outro lado da linha para uma conversa no bar no final do expediente. Amigos são para essas horas. Preocupado e pressuroso fui lá. Ele já me esperava. Cumprimentamo-nos, ele bebia uma cerveja e beliscava um tira-gosto: acompanhei-o. Procurei quebrar o clima carregado com a clássica pergunta. Qual a figura agora? Ele não riu como fazia sempre. Quase chorou quando disse: Um círculo. Um círculo?! repeti admirado, concluindo: São tantas assim?
Ele olhou-me com expressão mais triste ainda. Que nada, Pedro, melhor dizendo: um laço! Juliana, não sei como, descobriu tudo. Eu infelizmente não percebi que seis eram já demais e que o hexágono falta pouco para se assemelhar ao círculo. Armei para mim mesmo uma cilada. E Juliana fechou tanto o cerco que descobriu todas as minhas amantes, tornou a distância nula e quando isso acontece com o círculo que se fecha, tudo se reduz a um ponto. O ponto final.


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terça-feira, 20 de fevereiro de 2007

UM FRANCO NOS TRÓPICOS


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Publico agora a primeira de uma série de crônicas que atribuo a um francês(fictício) Pierre Dessault, que nas décadas de 60 e 70 do século passado esteve aqui pelo Brasil e depois, de volta à França, publicou um livreto com suas impressões da nossa região meridional. Pretendo coligir os contos num livro e publicá-los, se o dinheiro der, bem claro fique!

Sem mais delongas, vamos lá!




O AGENTE CUBANO



Passei por situações vexatórias no Brasil. Momentos que prefiro não lembrar, mas menciono ainda nesta crônica como advertência a outros turistas. Numa bela manhã de abril vivi um acontecimento insólito. Ainda excitado pela luminosidade dos trópicos em contraste com o cinzento inverno europeu, propus-me um passeio pelas ruas do Rio. Chegara num vôo noturno de Buenos Aires, e tudo o que vira até então foram as luzes do Rio multiplicadas pelo espelho do mar na orla; cedo o sol cumprimentou-me com o sedutor convite de um passeio, invadindo sem cerimônia o quarto desarrumado pelo cansaço da viagem. Aquiesci ao convite, ganhando a rua. O trânsito fluía célere como em toda metrópole. Atravessara a avenida e andava distraído, pisando sobre as ondas desenhadas pelas pedras portuguesas do calçadão de Copacabana. Seguia a esmo, tendo somente a cautela de fazer evoluir sobre o mapa que levava à mão — conforme evoluíam meus passos — uma linha com um lápis. Precaução de turista para não se perder. Lembro-me de, na ocasião, imitar deliberadamente Teseu e pensar por conseguinte em Ariadne.
Ao final de uma rua, com um jornal sobraçado que havia comprado pouco antes em uma banca — com o qual pretendia exercitar meu modesto português no hotel — e o mapa assinalando o labirinto de ruas, cheguei numa grande praça com muitas árvores. O movimento de gente desde uma quadra antes era grande e frenético. Acho que a falta de fleuma atraiu-me mais ainda a atenção, não pela rápida movimentação mas porque as pessoas gritavam e corriam em direção à praça. Apressei o passo e a evolução da linha no mapa.
Na praça tudo o que havia era balbúrdia e muita gente. Sobre o monumento de um homem a cavalo vários jovens gritavam um discurso e as palavras vindas de longe até mim, trazidas pelo vento, chegavam quase incompreensíveis. Meu fraco português e a gritaria infernal ao meu lado eram um empecilho ao entendimento. Eram todos jovens. Protestavam contra o governo, pude perceber ao cabo de vários minutos. Exigiam com palavras de ordem e muita ira, como se isso fosse bastante para intimidar os militares no poder, a libertação de vários jovens detidos numa manifestação no dia anterior. Sacudiam jornais — o mesmo que eu comprara — com a denúncia das atrocidades cometidas contra eles. Eram estudantes universitários e não conheciam limites para sua coragem. Mas isso não bastava. Não demorou para a polícia chegar. A balbúrdia transformou-se em enfrentamento aberto. O corre-corre envolveu-me. Surpreso, corri para fora do tumulto. Pouco adiantou: um soldado pulou sobre minhas costas e imobilizou-me com uma chave de braço. No desespero, praguejei em francês. Foi a gota d’água. O soldado arrastou-me até um superior com um sorriso triunfante nos lábios. Eu nada entendia.
— Chefe, peguei um cubano. Há agentes estrangeiros infiltrados na manifestação.

O sargento botou sobre mim um indefectível olhar de asno carregado de gravidade, sorriu para o subalterno, esqueceu os estudantes — que os outros policiais se ocupassem com eles —, e disparou:
— Soldado, hoje é o nosso dia. A nossa promoção está garantida. Vamos com o homem para o DOPS.

Em poucos minutos estava no DOPS, cercado de homens mal-encarados que gesticulavam e pareciam não estar de comum acordo. O ambiente recendia a fumaça de cigarro e os móveis pesados harmonizavam-se com os semblantes carregados dos agentes. Esperavam um superior para endossar o grande achado: o agente cubano.
Por algumas horas esperei quieto. Até as palavras sumiram de minha boca. Temia falar e comprometer-me ainda mais. Debruçados sobre a escrivaninha, enquanto aguardavam o chefe, os quatro agentes estudavam o que consideravam provas comprometedoras de minha ação de espia: o mapa, cuja linha assinalava o trajeto do hotel à praça, e o jornal com as notícias do ato público dos estudantes no dia anterior.

— Meu chapa, a encrenca é grossa — disse-me um, adiantando desdenhosamente o lábio inferior.
— É muito burro, esse gringo — zombou outro.

Permaneci calado até a chegada de um oficial do Exército.
Ele firmou um olhar azul e duro sobre mim, girou depois a cabeça para os agentes que permaneciam silenciosos desde a sua entrada, e falou:
— É este o cubano?

Eles assentiram triunfais.

— Seu nome e documentos — exigiu o oficial.
— Pierre Dessault, senhor. Meus documentos estão com eles.

Os agentes entregaram ao oficial meu passaporte e a carteira. Ele revirou a carteira, encontrou algumas notas de dinheiro brasileiro e várias de franco. Abriu o passaporte e virou-se furibundo para os seus subalternos:
— Imbecis, esse homem é francês e não cubano! Vocês querem criar um incidente diplomático? Por acaso não sabem diferenciar a língua espanhola da francesa? Sumam daqui agora mesmo.

Não tiveram tempo sequer de apresentar-lhe as provas do meu suposto crime. Mas ele pegou de sobre a mesa o mapa — correu o dedo sobre a linha a lápis — e o jornal para devolver-me, apresentando desculpas em corretíssimo francês:
— Eu gosto muito da lenda do Minotauro.

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2007

O QUE O CARNAVAL PODE DESPERTAR!


Pierrô e Arlequim - Almada Negreiros

CARNAVAL E MICARETA

Ramón e Antônio nunca tinham cruzado suas vidas. Cruzaram seus caminhos no carnaval, ou melhor, alinhavaram porque quando se conheceram estavam bêbados. Animavam-se, como centenas de foliões no bloco Rola Preguiçosa – tarda mas não falha, ao som da bateria da Mangueira, pela avenida Epitácio Pessoa, na Lagoa.
Beberam, pularam, cantaram e beberam mais. Quando ainda estavam um pouco lúcidos, trocaram nomes e conheceram onde cada qual trabalhava. Assim feitos amigos o Carnaval tinha mais calor. Quase ao final do percurso pulavam abraçados um ao outro. Primeiro pela animação, depois como apoio, ajudando-se a permanecer em pé e na folia até o fim. Praticamente na dispersão, entusiasmado como todo mundo, Ramón exagerou – não como todo mundo – e largou um beijo na boca de Antônio. Sufocado, o parceiro demorou um pouco a brigar, pois foi o tempo em que lutou para se desvencilhar do outro. Olhou-o nos olhos, viu as pupilas nadando em álcool, mas brilhantes de entusiasmo. O entusiasmo de um Arlequim.
– Viu o que você fez, cara?
– Não...e sim.
– Você me beijou! – e empurrou Ramón.
Ele foi e voltou como joão-bobo. A voz era pastosa.
– Você gostou?
– Você é cínico, cara? – e quis brigar.
Alguns foliões mais aprumados separaram os dois, e cada qual seguiu seu rumo. Ramón, de Arlequim bêbado, cantando pela rua: “um pierrô apaixonado que vivia só cantando por causa de uma Colombina acabou chorando, acabou chorando”. Antônio, cuspindo e limpando a boca nas vestes de Pierrô, não acreditava que Ramón fosse a sua colombina.
Mas tudo bem, isso passou. Afinal foi apenas um deslize de Carnaval. E sendo deslize é reparável. Também, carnaval não é o ano todo para novos encontros desses acontecerem.
Antônio pensou no beijo do Arlequim durante vários dias. Será que Ramón também pensava? Inquieto, resolveu visitá-lo no trabalho. Vestiu uma roupa bem leve, calçou tênis e foi lá. Não queria assustá-lo quando lá chegasse. Poderia pensar que o procurava para uma briga. Pegou o elevador, desceu no andar certo com um longo corredor, procurou a sala e achou. Entrou. Lá estava Ramón atrás de uma mesa ampla, diante do computador. Quando viu Antônio, levantou-se pálido. “Não teve jeito, acredita que vim brigar”, lamentou Antônio, concluindo em seguida seu raciocínio, “vai ser logo na bucha”.
– Eu vim aqui para...
Ramón interrompeu-o, adiantando a mão espalmada em sinal de “espera aí”. Mas o outro insistiu, não fora até ali para desistir quando estivessem cara a cara.
– Eu vim para fazermos logo a nossa micareta particular.
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MAIS jjLeandro
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FELIZ CARNAVAL A TODOS. CUIDADO COM RESFRIADOS, USE CAMISINHA!!

terça-feira, 13 de fevereiro de 2007

A INSEGURANÇA NOSSA DE CADA DIA!




Gravura colhida em: www.ecclesia.com.br (Todos os direitos reservados)





O MEDO DO ANJO EM NOSSO CÉU

Um anjo com asas
Veio me avisar
Que agora tem medo
De voar.
E em meio
A tanta violência
Pede clemência.
Nem mais no

céu está seguro.
Pois mesmo que
Não persigam anjos,
Que a morte
Não lhe tenha sido urdida,
Ainda há o risco
De uma bala perdida.




segunda-feira, 12 de fevereiro de 2007

COMO A SOCIEDADE TORNA UM HOMEM INVISÍVEL



Gravura - Mendigos (Plumilla de Ignacio Mora)


O HOMEM INVISÍVEL

Não, não é ficção científica. Essas coisas ainda não acontecem por aqui. Mas o Deodato realmente tornou-se invisível. Todo mundo olhava para ele, mas era como se não existisse. Nada espetacular e glamourizado como o Homem Invisível daquele seriado americano da década de 1970, assim tornado pelos efeitos de um acidente radioativo. Deodato não era um cientista, mas um homem comum. Só vim saber o seu nome, e também um pouco de sua história, bem mais tarde pelos jornais, que contaram na crônica policial – com um pouco de surpresa e culpa – o seu silencioso infortúnio. Acharam em seu bolso de mendigo um bloquinho de papel, a única coisa que guardava com capricho, como se fosse um testamento – não desses para deixar pecúnia. Mas um muito mais valioso: verdadeiro patrimônio humano. Para sobreviver às intempéries, guardava-o enrolado no plástico de um saco de açúcar Cristal. Era um alerta sobre a sua história para todos nós, onde num trecho relatava, sem egoísmos: “sei que o que estou passando outros milhões também passam em silêncio”. Ele tinha consciência de sua solidão e de sua invisibilidade: “outro dia no sinal estendi a mão em busca de um trocado e o sujeito dentro do carro, vidro fechado, evitando o fogo da tarde, fez de conta que eu não existia. Nem me olhou para dizer um não. Isso sempre é melhor do que o desconhecimento”.
É ele quem vai falar o tempo todo. Serei apenas o veículo dessa comunicação. Como foi parar nas ruas? Era uma história longa, que preenchia várias folhas com uma letra minúscula, cheia de reparos – como a querer consertar a vida disse o jornalista. Mas a mim pareceu ser vergonha de se expor irremediavelmente ao mundo todo – tinha certeza de que iriam lê-lo um dia. “Eu sou um homem do Nordeste. São Paulo foi um sonho que vi virar pesadelo. Em primeiro lugar porque nunca consegui trabalho – vivia de biscate e, muito depois, de esmolas. E depois porque, desde que casei, a mulher se deu melhor com o vizinho do que comigo. Me meteu os pés na bunda e fui parar na rua, me enchendo de pinga para esquecer tudo”.
Mesmo toda a vida sendo um homem simples e sem posses, Deodato sentiu e descreveu a chegada ao fundo do poço: “quando eu vivia de biscate e morava na favela, ainda existia para muita gente. Muitos deles me davam bom dia, conseguia um crédito na padaria da esquina. Alguns companheiros de tragos no bar me chamavam de Déo”. Na rua conheceu o verdadeiro opróbrio: “na rua as pessoas ou te olham com a cara ruim, ou te ignoram. Quase toda vez que me aproximava de uma com a mão estendida, ela virava o rosto de banda, olhando para o outro lado como se procurasse alguém; mesmo se do outro lado corressem um longo muro sujo e a calçada deserta”.
Quando chegou ao irrefutável conhecimento de quem era, mesmo no estado degradante em que se encontrava, ainda sofreu. E isso eu vi claro nas letras trêmulas com as quais escreveu a breve sentença – eu estive com o jornalista que redigiu a notícia e ele me mostrou o bloquinho: “eu não sou ninguém. Eu não existo!”. Em certo trecho do seu testamento quase fui às lágrimas. Ele escreveu, por certo, ao abrigo de alguma marquise de prédio no centro velho de São Paulo, ou ao léu em alguma praça enquanto queimava jornais e papelões para espantar o frio da noite: “para mim todo dia chove. O mundo é um borrão que vejo por trás de uma cortina de água”. Eram as lágrimas dos momentos de dor aguda. Descobri com Deodato que o homem perde tudo: bens, família, dignidade, mas nunca a capacidade de emocionar-se.
“E como souberam de sua história?” perguntei ao jornalista ainda na redação. Ele coçou o queixo, abriu a gaveta da escrivaninha do computador, depositou o bloquinho entre outros papéis – ainda envolto no saco de açúcar – e apagou o cigarro no cinzeiro antes de falar. “Foi simples. Deodato um dia deixou de ser invisível”. “Quando?”, perguntei intrigado. “Quando morreu, homem! Os cachorros foram os primeiros a descobri-lo. Depois veio a inhaca do cadáver...a vizinhança incomodada...e você sabe como são essas coisas”.
Acredito que Deodato augurou esse momento: “Um dia ainda vão me ver”. Mas o jornalista discordou de mim. Na sua versão romantizada, Deodato quis acrescentar à capacidade de se emocionar que o ser humano nunca perde, a despeito de como leva a vida, a condição de jamais abdicar de sonhar.


Eu também


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NUMA ALFAIATARIA QUALQUER DE QUALQUER UM BRASIL



CORTANDO O PORTUGUÊS

Numa alfaiataria qualquer
Interiorzão do Brasil

“Tizora di oro.
Moldi e roupa
Qui acenta,
Duis pé a venta.”



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sábado, 10 de fevereiro de 2007

CONSIDERAÇÕES POÉTICAS SOBRE O PÊNDULO.



PÊNDULO

Quando vacilo
É porque
Oscilo
Entre o sim e o não.



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HORAS

O movimento
do pêndulo
É uma dança
Atrás do tempo,
Que nunca alcança.

jjLeandro

HUMMM!! AS DENTISTAS!!


Detalhe da boca do tubarão branco - Um predador que não vai ao dentista. E será que algum dentista lá ia querer enfrentar o bicho? (Colhida da internet)
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VISITA AO DENTISTA



Nosso medo de dentista é algo histórico. Talvez porque os primeiros deles tenham sido barbeiros que, àquela época, com métodos hoje considerados mais próximos da tortura que de uma ação lenitiva, barbarizaram sem querer os pacientes.
Trato do assunto a propósito de um amigo meu – recalcitrante quando o assunto era dentista – que recentemente se viu às voltas com um e depois me relatou o acontecimento. Silencio-me sobre o nome para evitar que pague um mico como se diz hoje. Ele não é mais uma criancinha que é arrastada ao consultório pela autoridade paterna. Aliás, é casado há pelo menos vinte anos. E precisava ir: um dente incomodava e não tinha saída. Enquanto protelava, fingia pesquisar entre os inúmeros atendentes pelo seu plano de saúde o que melhor lhe convinha. Era um estratagema para ganhar tempo sem que a covardia o incomodasse. Nesse mister consumiu dias. Procrastinou o quanto pôde e só cedeu quando a dor apertou. Rendeu-se afinal porque os paliativos e remédios caseiros não mais surtiam efeito. Optou na marra pela cadeira do dentista à insônia quando o maldito dente doía.
Entre os critérios para seleção achou justo dar maior peso à proximidade do consultório de sua casa. E já que julgava ir sofrer bastante, optou então por sofrer nas mãos de uma mulher. Judiciou ser um sofrimento mais brando e sem riscos de num pique de dor querer sair na bruta com o profissional. Resignou-se em ir a qualquer uma, por não haver maneira de descobrir a idade nem a beleza da dentista, o que seria agradável. Na única tentativa que fez, a atendente do outro lado da linha respondeu áspera: “O senhor tem certeza que procura uma dentista? Não seria uma agência de matrimônio?” Por isso, pôs o rabo entre as pernas, confiou na sorte e fez a opção. Iria a uma dentista a dois quarteirões de sua casa. Nesse momento culpou-se por não ser um ‘tantinho’ mais observador, afinal o consultório era na mesma rua de sua casa e a apenas dois míseros quarteirões e nunca suspeitara que ali tivesse uma dentista. Mas sua consciência absolveu-o rapidamente com uma desculpa simples: “Eu lá sabia que um dia iria precisar de um deles?!”
Com todos os procedimentos ajustados, foi lá. De cara ficou surpreso com o ambiente asséptico e a luz acolhedora. Ar condicionado, duas atendentes risonhas e gentis. Pintura alegre e nova nas paredes. Sofás confortáveis. Revistas sobre a mesinha de centro. Água e café sobre o balcão. E o que mais o surpreendeu: pacientes despreocupados, sem cara de quem se encaminha para a câmara de gás. Pensou: “Calma, ainda não é hora de se render às aparências”.
Foi arrancado de suas meditações de forma abrupta, que fez o coração disparar, quando a atendente chamou seu nome. Era a sua vez. Depositou lentamente sobre a mesinha a revista que folheava sem interesse e seguiu-a angustiado por um corredor. Teve outro choque quando viu a dentista. Esse foi reconfortante: era jovem e bonita. As luvas de látex que já lhe cobriam as mãos impediram-no de diagnosticar o seu estado civil. Mas ele foi agraciado com um gentil sorriso que a máscara rapidamente cobriu. Antes, porém, respondeu a uma pergunta de praxe: “Senhor, há quanto tempo fez a última visita a um dentista?” Meditou um pouco e declarou envergonhado: “Não me lembro de quando a mamãe disse que foi”.
Literalmente deitado na cadeira, ele relaxou e quase dormiu. Seu pensamento dava voltas e chegou até a imaginar-se casado com a dentista. Tornou a si quando ela disse educadamente que precisaria extrair o dente que o incomodava. Aliás, dizer assim era um elogio. Não era mais um dente, mas o ‘caco’ que sobrou dele. E não ligou muito à polida reprimenda que ela lhe deu quando disse que devia ser mais assíduo ao dentista. Pensou com seus botões: “Virei outras vezes aqui”.
Voltou no dia seguinte mais alegre e descontraído para a extração. Foi recebido como de praxe com atenção e afabilidade. Até arriscou contar uma piada insossa para a dentista, tão velha quanto os seus gastos dentes, que ela sorriu – como se diz – para não perder o cliente.
Extraiu o dente e voltou para casa com o tratamento já encerrado.
Mas surpreendentemente, um dia após olha ele lá no consultório de novo com a cara mais lavada do mundo. As atendentes sorriram gentis e quiseram saber o motivo da inesperada visita. Ele disse com cara de gato que bebeu o leite: “Acho que ficou aqui – e apontou para a boca – uma ‘raizinha’ que a doutora esqueceu de arrancar”.

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2007

QUEM QUER SER PERFEITO?

É uma boa ser perfeito? O homem vive buscando a perfeição; e quando encontrá-la, o que buscar mais? O que fazer ainda? Fica a pergunta no ar: não será a perfeição o fim de tudo? O que não se labuta mais!

PERFEIÇÃO

A perfeição
É a procura do nada.
Uma coisa pronta,
Finalizada.


O TEMPO


A persistência da Memória(detalhe) - Salvador Dali


NOVAMENTE O TEMPO

Custas a crer
Que a vida passa. Mas cada vez
Que te olhas no espelho
Não te achas.

http://jjleandro.blog.terra.com.br/

http://fotolog.terra.com.br/jjleandro60

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2007

RESOLUÇÃO DO ENIGMA "PROGRAMA"



Como dissera no post anterior, o próximo traria a resolução do enigma/poema que postei no OVERMUNDO http://www.overmundo.com.br/banco/programa-poesia-sinaletica


Ei-la

PROGRAMA

&? Quer companhia?
$? Quanto paga?
@ Quinze reais
+! Mais!
... Indecisão, espera
?? E aí??
69 69 reais
+? Mais?
=!! Não, só!!
... Indecisão, pensando
&?? E aí, quer a companhia??
! Vamos!
( ) Seguem juntos ao motel
!... Ai!...
!... Ui!...
!... Ai!...
!... Ui!...
. Fim

terça-feira, 6 de fevereiro de 2007

A RESPOSTA DO ENIGMA




PROGRAMA


Amanhã, 7, (aqui no Tocantins tem horário de verão) postarei aqui a decifração do enigma que está no seguinte endereço: http://www.overmundo.com.br/banco/programa-poesia-sinaletica e que atende pelo nome em epígrafe PROGRAMA


ATÉ LÁ E AÇULEM A CURIOSIDADE!!!!!!

REBELDIA ATÉ ENTRE OS POEMAS, VEJAM SÓ!!

O POEMA ÓRFÃO


O poema escorrega
Da ponta do lápis,
Salta ágil ao chão,
Em meu rumo dá um passo
E fere-me num soco
Com a mão.
Mão que o criara para os abraços.
Que mal-agradecidos
Os filhos são!
Critica-me os erros
De português,
A pieguice
E outros defeitos
Com que lhe fiz.
Caminha para a rua,
Mas antes me diz
E logo depois se vai:
Prefiro ser órfão
A te ter como meu pai!



Esse poema surgiu enquanto viajava pela internet em busca de portais de literatura. Saí em um cujo nome era "Na ponta do lápis". Quando li o nome, imediatamente o poema surgiu em minha cabeça. Rápido digitei-o, e ele, rebelde, fez o que fez. Sei que nasceu prematuro - o coitado -, mas mesmo teratogênico o pai não deve segregar o amor. E isso nunca fiz, deixo claro a todos que me possam estar culpando. Apesar das deformações (como ele disse-me à cara, culpando-me, para mim são apenas diferenças!), quero-o de volta. Sou seu pai e sei que nenhum outro autor vai entendê-lo e, por conseguinte, adotá-lo. Hoje estou a sua procura, tentando que se converta, que volte a casa, que seja um filho pródigo. Não tenho notícias dele, se alguém souber de seu paradeiro, por favor (isso é súplica de pai!) envie-me um email que agradeço bastante. Houve um amigo, na melhor das boas intenções, que sugeriu ir a um programa de tv, desses que expõem foto e tudo, fazer um apelo e quem sabe algum vizinho possa alertá-lo sobre o pai em desespero. Mas esses programas são sempre sensacionalistas, abusam de nossa miséria em busca de audiência e das lágrimas alheias. Tenho medo que agindo assim o feitiço vire contra o feiticeiro e ele me odeie mais ainda. Mas me valho da internet, sem mais exposição que a minha e de meu sofrimento - o que não fazemos pelos filhos, ainda que mal agradecidos, como se vê -, na tentativa de que reconsidere a sua rebeldia.
O meu medo é que se meta em más companhias e se perca. Já ouvi falar de tantos poemas que são um terror, alguns assassinos, outros ladrões, outros tantos drogados e traficantes. O meu medo é esse: que se meta com essa gente, imaginando sua companhia como válvula de escape, mas na realidade estará cavando a sua sepultura. Quanta insônia com esses tormentos. Quando retornar, se retornar, direi que até meu apetite sexual embotou, não levanto mais o lápis para escrever uma vírgula, tudo é ponto final. Depois que ele se foi, nenhum outro nasceu!
Até quando minha vida será uma página em branco?
(enxugo as lágrimas)
Mas tenho um alento se não se tiver se metido numa enrascada, vitimado por uma bala perdida comprando droga em favelas (por que só pensamos o pior, sempre?), se o metrô de São Paulo não o tiver tragado naquele fatídico buraco, se não tiver entrado para a política(meu Deus, isso não!), se não tiver querido fugir para Campinas para jogar no Guarani(seria descer ao terceiro inferno - a terceira divisão), se não tiver acertado os números da mega-sena, casado com uma baranga - dessas que nos arrancam os olhos e as unhas - e ela o tiver assassinado com a ajuda dos amantes, alguém avise-o que estou muito doente e tenho que cuidar da herança.
Ele vai entender, eu sei, vai se deslumbrar com um mundo sedutor. Uma biblioteca com mais ou menos uns vinte mil volumes. Livros com capa dura e letras de ouro, quanto ouro(isso atiça o seu amor, tenho certeza!), muitos maravilhosamente encadernados. E os contos e as poesias? Humm! Sei que na vida que leva, com certeza de desregramentos, já deve conhecer o excitante mundo do sexo. Filho, chega cá, ouve isso: são tantos contos e poesias com mulheres maravilhosas, mundos fantásticos. Tudo para você. Volta, papai te ama! Vais herdar tudo isso para a esbórnia.

Do pai que nunca te esquece,

O autor




segunda-feira, 5 de fevereiro de 2007

UMA MISSIVA PARA A AMADA NA TERRINHA

DIÁRIO DE BAGDAD


Caríssima Maria,

Como foi difícil fazer esta missiva sair de minhas mãos e chegar a ti, ó querida!
Ia embalada em um belo pacote com papel impermeável e as forças de segurança a toda hora me paravam para averiguações em busca de bombas e assassinos que se destroem e a outrem nesses quadrantes. Não sei em que estado chegou aí, mas daqui saiu já em petição de miséria. Interessante que esses petardos, que tentavam adivinhar em mim, passam moucos às forças de segurança abraçados aos desnaturados que os conduzem. É aquele velho dito que nos causou tonturas no Brasil de tanto ouvi-lo: procuravam os gajos chifres em cabeça de égua– apropriado nesse caso que se use o cavalo, posto que sou eu o indivíduo em questão.
Mas bem, querida, estou a te escrever para relatar as agruras a que estou submetido aqui em Bagdad desde que em má hora pus os pés nesta terra conturbada a procura de agilizar um negócio que nos pusesse o pão à mesa. Por isso peço que se demore em aviar a tua vinda, que a tardança não é sinal de desapreço, mas de penúria pecuniária para te trazer a meus braços que sentem a tua falta, e na tua ausência vivem escondendo a cabeça no pavor das explosões. Saí da terrinha, o nosso bendito Portugal, com a ideia fixa e a cabeça cheia de esperanças de cá me estabelecer num ramo que floresce nesta terra que de santa nem o nome tem: as actividades funerárias. Era mesmo uma grande aposta, que se não fosse um negócio da China apropriado seria nomeá-lo do Iraque, pois que as agências de notícia expunham diuturnamente o caos desses atentados e os corpos mutilados de fazer dó dessas pobres criaturas. Nem nós portugueses, nas priscas eras do Império, fomos tão abusados e tão sanguinários como os que por aqui se destroem e destroem tudo ao derredor.
Mas estou esmorecido, como te antecipei, essa é palavra justa, ó querida Maria. Santa, ainda bem que não vieste comigo. Estarias a te debulhares em lágrimas com o sofrimento dessa gente e a penúria em que me meti. Com tanta morte, quase cem ao dia, justo se faz inferir que demanda tem, e os concessionários - por muitos que fossem seriam insuficientes para atendê-la – nem tantos são e ainda têm muitos deles a desventura de aqui e acolá se irem pelo espaço em algum evento explosivo, passando com propriedade de concessionário a cliente.
Ainda não me fui buscar um outro porto, um outro lugar para me estabelecer porque dinheiro não tenho. Vejas, vivo de déu em déu em busca de clientes, arriscando a pele aos lobos, quase queimando-me nas chamas dos atentados, interrompendo o choro das famílias em desespero com a desventura dos explodidos a procura de vender um esquifezinho que seja. O mostruário carrego à mala, com modelos que são um primor, mas não há, no infortúnio que se enredam, um só que queria pôr os olhos sobre ele.
É um povo que tem lá suas tradições, que aprendi a respeitar, e no aperreio da má fortuna, preferem enrolar seus mortos, ou o que sobrou deles, em sudários de linho ou depositá-los em toscos caixões de cedro. Transportam-nos muitos deles amarrados sobre os veículos e os enterram em grande transe de fé.
É, minha querida Maria, ó doce amada. Soubesse eu das tradições e conformidades dessa gente, não me teria arribado da terrinha com tanta pressa – acho que ditada pela cobiça - achando que vislumbrava um novo eldorado. Bem deve estar o Joaquim – e que tivesse eu ouvido o vosso conselho e vos seguido! – no negócio de morte que também se meteu ele, traficando armas na estremadura de Angola e África do Sul.
Minhas actividades funerárias estão bem de conformidade com o meu estado: a morrer neste exílio! É de bom alvitre te dizer que acredito que em pouquíssimo tempo estarei a dar com os burros n’água nesse empreendimento, como tão propriamente dizem os brasileiros (e que saudade eu tenho do pão quentinho de nossa padaria na Lapa que em miserável hora postergamos!). Acredito mesmo que isso só ainda não é verdade porque água por aqui é um artigo tão escasso como a paz. Mas se não é assim, de outra conformidade será, pois que temo por algo muito pior ainda: que não dando com os burros n’água tudo vá pelos ares consoante a realidade desta terra.
Antes que isso aconteça, que não sou burro, digo isto todo dia cá com os meus botões – acho que na tentativa de criar coragem -, se os ventos não me vierem a favorecer faço uma liquidação irresistível de todas as urnas, daquelas de matar qualquer um de inveja (como quando aí liquidei a quinta a bagatelas para me meter neste estúpido negócio das Arábias, que esse é o nome correto), ponho um tanto de dinheiro no bolso e volto para nossa pequena aldeia em Trás-os-Montes, de onde não devia nunca me ter ausentado com ideias de riqueza e lustre na cachola.

Do seu bom e inolvidável Manuel